Artigos Científicos

Atenção à primeira infância nos EUA e no Brasil

Lia Beatriz de Lucca Freitas; Terri Lisabeth Shelton

9 de abril de 2015

Psic.: Teor. e Pesq. v.21 n.2 Brasília maio/ago. 2005

 

Atenção à primeira infância nos EUA e no Brasil1

 

Lia Beatriz de Lucca FreitasI,2; Terri Lisabeth SheltonII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul 
IIUniversity of North Carolina at Greensboro

 


RESUMO

Transformações culturais, sociais e econômicas têm gerado o incremento de políticas públicas de atendimento à criança pequena. Nossa discussão sobre essas políticas é simultaneamente histórica (examina concepções de cuidado e educação ao longo do tempo) e comparativa (enfoca políticas estabelecidas nos Estados Unidos da América e no Brasil). Nossa análise indica que a atividade de cuidar tem sido desvalorizada no atendimento à primeira infância. Discutimos por que é necessário reconceitualizar o cuidado para que se transforme em fato o direito da criança ao cuidado e à educação e sugerimos ações em nível das políticas públicas, da pesquisa e das práticas.

Palavras-chave: crianças pré-escolares; cuidado; educação infantil; políticas públicas.


ABSTRACT

Various cultural, social, and economic changes have led to the rapid growth of policies designed to support young children's care and education. Our discussion of these policies is both historical (examining the ways in which notions of care and education have changed over time) and comparative (focusing on historical developments in care and education policies in the United States of America and Brazil). Our analysis suggests that the activity of "taking care" has been devalued in these policies. We argue that it is necessary to reconceptualize this activity if young children's rights to care and education are to become reality. We also present recommendations for policy, research, and professional practice.

Key words: preschool children; care; early education; public policy.


 

As práticas de atenção às crianças sofreram mudanças na cultura Ocidental, na medida em que se transformaram as concepções a respeito da criança (Ariès, 1962). Grandes pensadores do século passado chamaram a atenção para a importância dos primeiros anos de vida do ser humano. Segundo Sigmund Freud e Jean Piaget, por exemplo, os alicerces das estruturas que permitem o ser humano conhecer e interpretar o mundo (Piaget, 1936/1977a; 1937/1977b; 1945/1994), amar (Freud, 1905/1949; 1920/1955) e relacionar-se com os outros (Freud, 1923/1961; Piaget, 1932/1992) constituem-se nesse período. Estejamos ou não de acordo com o conjunto de suas idéias, fato é que, hoje, um grande número de pesquisadores se dedica a estudar os primeiros anos de vida.

Shonkoff e Phillips (2000) sintetizaram e avaliaram criticamente os resultados de várias décadas de pesquisa, os quais têm indicado que nos primeiros anos de vida assentam-se as bases para um desenvolvimento sadio em suas várias dimensões (cognitiva, emocional, social e moral). Karr-Morse e Wiley (1997) acreditam que estamos diante de uma quiet revolution, isto é, uma mudança radical em nossa concepção sobre o ser humano, na qual esses conhecimentos desempenham um papel fundamental. A primeira infância não é "(...) um prelúdio para um período de desenvolvimento realmente importante" nem "(...) um inócuo período para a aprendizagem do controle muscular básico, o qual nós esperamos que ocorra automaticamente, na medida em que as necessidades básicas sejam atendidas" (p. 271). Pelo contrário, nesse período, importantes aquisições acontecem (ou deixam de acontecer) devido às relações que se estabelecem entre a criança e seu mundo. Shonkoff e Phillips (2000), porém, recomendam que se evite a passagem apressada dessas descobertas científicas às suas implicações para o cuidado e a educação das crianças. Por exemplo, quanto às extraordinárias descobertas das neurociências sobre o desenvolvimento do cérebro, eles afirmam: "é essencial dosar o entusiasmo proveniente das novas aprendizagens com a cautela que requer os limites do que se sabe atualmente" (p. 183).

Pesquisas na área econômica têm sugerido que os programas destinados às crianças pequenas devem ser entendidos pela sociedade em geral, e particularmente pelos governantes, como um bom investimento (e não como despesa) por causa de seus amplos e duradouros benefícios. Por exemplo, o Federal Reserve Bankrealizou uma pesquisa cujos resultados indicaram que alocar recursos nesses programas é melhor que "investir em arriscados fundos de capital, subsidiar novas indústrias como, por exemplo, a indústria biotecnológica, construir novos estádios ou prover incentivos fiscais a empresas" (National Institute for Early Education Research, 2003, p. 13). Estudos longitudinais realizados nos Estados Unidos da América estimaram que cada dólar investido em programas de qualidade para a educação de crianças pequenas pertencentes a famílias de baixo poder aquisitivo possibilita a economia de sete dólares em virtude da redução do número de crianças que necessitam de educação especial, dos recursos despendidos em programas de assistência social e das taxas de criminalidade nas populações marginalizadas. Estimativas quanto aos benefícios para crianças provenientes de famílias de médio e alto poder aquisitivo devem ainda ser realizadas (National Institute for Early Education Research, s.d.).

Segundo dados da UNESCO3, a educação infantil foi o setor da educação com as melhores taxas de crescimento nesses últimos 15 anos na América Latina. Na maioria dos países da Europa e da América do Norte, um grande contingente de crianças na faixa etária de três a seis anos freqüenta serviços financiados por fundos públicos; um investimento equivalente, porém, ainda não foi realizado no atendimento a crianças com menos de três anos. De acordo com o National Institute for Early Education Research (2003), o aumento do número de mulheres no mercado de trabalho explica apenas parcialmente o aumento pela demanda de serviços. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, muitas crianças cujas mães não estão inseridas no mercado de trabalho freqüentam creches e pré-escolas.

Esses são apenas alguns dos componentes de um complexo conjunto de transformações culturais, sociais e econômicas que têm gerado o incremento de políticas públicas destinadas ao atendimento das crianças pequenas. As políticas implementadas no Brasil neste campo já foram comparadas a de outros países em desenvolvimento (Rossetti-Ferreira, Ramon & Silva, 2002) e as políticas estabelecidas nos Estados Unidos da América têm sido comparadas àquelas estabelecidas em outros países industrializados, principalmente em países Europeus (Bowman, Donovan & Burns, 2001; Howard, Williams, Port & Lepper, 2001). Neste artigo, porém, nós apresentamos uma análise das políticas de atendimento à criança pequena estabelecidas no Brasil e nos Estados Unidos da América. Apesar das enormes diferenças econômicas que separam Brasil e os Estados Unidos da América, ambos os países têm dimensões continentais, um elevado número de habitantes e grande diversidade cultural. À cultura dos índios nativos, somaram-se aquelas dos imigrantes Europeus e dos escravos que vieram da África. Posteriormente, ambos os países receberam um significativo contingente de Asiáticos. Em 2000, os Estados Unidos da América tinham 281.421.906 habitantes, sendo 19.175.798 (6,8% da população) crianças pré-escolares (U.S. Bureau of the Census, 2000) e o Brasil tinha 169.799.170 habitantes, sendo 23.141.413 (13,6% da população) crianças pré-escolares (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2000).4Não é uma tarefa simples, em países com essas características, implementar políticas públicas que atendam com qualidade todas as crianças e que, de fato, respeitem a diversidade de seu tecido social.

Inicialmente, realizamos uma breve revisão histórica das políticas de atendimento à primeira infância estabelecidas nos dois países. Ao traçar um paralelo entre as políticas públicas dos Estados Unidos da América e do Brasil, foi possível constatar, por um lado, uma crescente semelhança e, por outro, importantes diferenças. Dentre as diferenças encontradas destacamos o fato de que, enquanto no Brasil o cuidado e a educação são atualmente reconhecidos como um direito da criança desde o seu nascimento, o mesmo não ocorre nos Estados Unidos da América. Dentre as similaridades ressaltamos a existência, desde suas origens, de uma diferença entre os serviços destinados às crianças das camadas sociais mais baixas e àquelas provenientes de famílias abastadas. A análise histórica das políticas de atendimento à criança pequena indica que essa diferença constituiu a separação entre cuidado e educação nesse campo. Em ambos os países, tem-se insistido na necessidade de integrar cuidar e educar. Nossa análise sugere, contudo, que existe uma lacuna conceitual nesse domínio, a qual deveria ser preenchida para que se transforme em fato o direito universal da criança ao cuidado e à educação.

 

Atendimento à Criança Pequena nos EUA e no Brasil: Raízes Históricas e Alguns Avanços Recentes

Políticas de cuidado e educação da criança pequena nos Estados Unidos da América

As primeiras organizações destinadas ao atendimento de crianças pequenas surgiram no início do século XIX em função dos movimentos migratórios e do crescente processo de industrialização (Howard & cols., 2001; Scarr & Weinberg, 1986). Na época, as crianças eram vistas como "o produto da competência e atenção de seus pais" (Howard & cols., 2001, p. 56) e a eles cabia a responsabilidade de educá-las para que se tornassem bons cidadãos. Nas cidades, encontravam-se muitas crianças cujos pais passavam boa parte do dia no trabalho e tinham pouco tempo para dedicar a seus filhos. A convicção de que o governo deveria intervir na educação dessas crianças foi estimulada por um movimento para manter a integração cultural. Em função disso, em 1828, foi criada a Boston Infant School, a qual atendia, especialmente, filhos de imigrantes que precisavam trabalhar para garantir a sobrevivência de suas famílias.

Na segunda metade do século XIX, surgiu um outro tipo de serviço para crianças pequenas. Em 1856, Margaretha Schurz, uma imigrante alemã que havia estudado com Freidrich Fröbel, abriu o primeiro jardim de infância para atender a crianças de língua alemã. Apenas quatro anos mais tarde, Elizabeth Palmer Peabody – inspirada no trabalho de Schurz – fundou o primeiro jardim de infância para crianças de língua inglesa. Os jardins de infância visavam essencialmente ao desenvolvimento moral e social de crianças com três anos de idade ou mais e foram as famílias abastadas as que primeiro tiveram acesso a esse tipo de serviço.

Após a Guerra Civil (1861-1865), foram produzidos diversos manuais para pais com o intuito de enfatizar a responsabilidade da família em prover boa educação para as crianças. Além disso, os serviços de atendimento às crianças cujos pais precisavam trabalhar expandiram-se rapidamente devido ao apoio de organizações filantrópicas. Neste caso, o objetivo principal não era o desenvolvimento das crianças, mas evitar que elas perambulassem pelas ruas. No início do século XX, esses serviços destinados a assistir a famílias "patológicas" (Howard & cols., 2001), isto é, àquelas incapazes de prover adequado cuidado a suas crianças, eram considerados um componente importante do bem-estar social. O atendimento era prestado seletiva e temporariamente até que os próprios pais pudessem tomar conta de suas crianças.

A idéia de que alguns serviços servem para "guardar" as crianças mais que educá-las prevaleceu também ao longo desse século. Além disso, a criação de programas para atendimento às crianças pequenas foi motivada, muitas vezes, mais por interesses econômicos contingentes que pelas necessidades das crianças e de suas famílias. Por exemplo, no final dos anos 1920, no período da grande depressão econômica, surgiram os centros de atendimento às crianças, uma forma conveniente de ocupar adultos desempregados e de alimentar crianças famintas. Durante a Segunda Guerra, o governo federal financiou o atendimento a 400 mil crianças, porque suas mães eram necessárias à indústria da guerra (Scarr & Weinberg, 1986; Tobin, Wu & Davidson, 1989).

Paralelamente a esses serviços destinados ao cuidado de crianças pobres e de pais trabalhadores, nos quais elas permaneciam todo o dia (e por isso foram chamados day-care centers), desenvolveram-se as creches (nursery schools) que visavam principalmente à socialização das crianças e, em geral, eram freqüentadas durante meio-turno. Nos anos 1920 e 1930, as creches – idealizadas por psicólogos – serviam como laboratórios de observação e estudo da criança e, ao mesmo tempo, prestavam serviços a famílias. Nas décadas de 1940 e 1950, o trabalho realizado nas creches foi em grande parte influenciado pelo pensamento de autores como Dewey, Montessori, Freud e Piaget. Nessa época, as creches eram um luxo acessível somente às crianças cujos pais podiam pagar pelos serviços (Scarr & Weinberg, 1986).

O lançamento do Sputnik pela União Soviética, em 1957, foi considerado um grande avanço tecnológico com significativas conseqüências industriais e militares. Este feito, em plena Guerra Fria, foi interpretado como um desafio ao sistema educacional americano, o qual deveria ser revisto para fazer frente à provável superioridade científica dos soviéticos. Inúmeras pesquisas já haviam mostrado o impacto da classe social no desempenho dos indivíduos tanto nos testes de inteligência quanto na escola: as crianças provenientes de famílias com baixo poder aquisitivo começavam a escola com habilidades cognitivas menos desenvolvidas que crianças provenientes de famílias economicamente privilegiadas e essas diferenças ampliavam-se durante o processo de escolarização. É nesse momento que floresce a idéia da existência de uma "privação cultural" para explicar essas diferenças (Bernstein, 1962; Reissman, 1962).

Em 1964, como parte da campanha de "Guerra à Pobreza" do Presidente Lyndon Johnson, foi lançado o projetoHead Start (Public Law 88-452), cujo objetivo primordial era preparar as crianças provenientes de famílias de baixa renda para a escola, através de uma combinação de serviços: educação, alimentação, assistência médica e dentária, serviços de saúde mental e de assistência social e educação de pais. Segundo Scarr e Weinberg (1986), o tipo de atendimento oferecido a essas crianças não era, porém, o mesmo daquele das creches: "em contraste com as creches dos anos 50, a maioria dos programas Head Start enfatizaram mais a educação que o desenvolvimento" (p. 1143), priorizando o treinamento de habilidades requeridas no processo de escolarização, tais como prestar a atenção, seguir instruções e obedecer às normas.

O programa Head Start básico é centrado em uma pré-escola que atende crianças de três a cinco anos. Em geral, as crianças participam do programa em um turno, durante um ano escolar, embora algumas participem por dois anos. No entanto, o Head Start é bastante flexível em suas diretrizes, o que possibilita o estabelecimento de programas singulares, segundo um amplo espectro de diferentes abordagens (Howard & cols., 2001; Zigler & Styfco, 1993). Esse programa, desde o seu surgimento, tem gerado inúmeras polêmicas. Embora tenham sido encontradas diferenças positivas entre as performances na escola das crianças que participaram do programa e aquelas que não o fizeram, essas parecem desaparecer ao longo do processo de escolarização (Bronfenbrenner, 1974; Cicirelli, 1969; Datta, 1979). Mais recentemente, McLoyd (1998) sugeriu que a eficácia limitada desse tipo de programa deve-se ao fato de que "(...) utiliza estratégias secundárias para lidar com problemas primários" (p. 199), isto é, busca amenizar os efeitos deletérios do empobrecimento e da marginalização de parte da população no desenvolvimento das crianças ao invés de combater as causas destes. Esse programa, porém, contribuiu para mudar os padrões de atendimento à criança pequena nos Estados Unidos da América e serviu para despertar o interesse de inúmeros pesquisadores para a importância dos primeiros anos de vida. Conforme assinalou Harden (2000), as pesquisas realizadas com crianças que participam do projeto Head Start têm sido a principal fonte de informações disponíveis sobre as crianças pequenas pertencentes às minorias empobrecidas nesse país.

Ainda nos anos 1960, foi estabelecido um outro programa importante no que diz respeito às crianças pequenas. Trata-se do Early and Periodic Screening Diagnosis, and Treatment – EPSDT (Public Law 90-248) como um componente do Medicaid (serviço de saúde oferecido pelo governo americano para as pessoas que não podem pagar serviços privados de saúde), o que possibilitou que problemas de saúde física ou mental fossem identificados precocemente também em crianças provenientes das camadas sociais mais baixas. Todavia, segundo Powell, Fixsen e Dunlap (2003), menos de um terço das crianças que deveriam ter sido beneficiadas receberam um EPSDT completo e um número menor ainda recebeu uma avaliação no que diz respeito à saúde mental. Segundo esses autores, isso se deve, provavelmente, às dificuldades que os pediatras enfrentam para identificar problemas de desenvolvimento (em suas várias dimensões) em crianças pequenas.

O movimento de liberação das mulheres nos anos 1960 e 1970, o crescimento dos índices de divórcio, bem como do número de mulheres de classe média e média-alta que passaram a trabalhar fora de casa aumentaram significativamente a demanda por serviços de qualidade para atender as crianças durante todo o dia. Até os anos 1960, embora muitos estados tivessem buscado regulamentar os serviços destinados à criança pequena, não havia qualquer tipo de prescrição sobre o tipo de atendimento a ser prestado. Entre as décadas de 1960 e 1980, muitos foram os que trabalharam para o estabelecimento de padrões para que os serviços recebessem subsídios federais, a fim de garantir a boa qualidade do atendimento. Todavia, a falta de um sistema coordenado, em nível federal, e a insuficiente regulamentação dos serviços, em nível estadual, têm sido apontadas como importantes barreiras para a garantia da qualidade dos serviços para todas as crianças (Brauner, Gordic & Zigler, 2004; Cohen, 1996).

Nas últimas décadas do século XX, porém, ocorreram significativas mudanças na legislação que regula a educação de crianças com necessidades especiais, as quais beneficiaram também as crianças pequenas. O originalmente chamado Education for All Handicapped Children Act e, desde 1991, Individual with Disabilities Education Act (IDEA) reconheceu as complexas necessidades das crianças com necessidades especiais e de suas famílias, dando origem a um sistema transdisciplinar de serviços em todo o país. Inicialmente, as escolas públicas foram chamadas a atender crianças com necessidades especiais a partir dos três anos e, desde 1987, abriu-se a possibilidade de atender a partir do nascimento também crianças com atrasos de desenvolvimento (Ramey & Ramey, 1998). Essas mudanças na legislação permitiram o acesso aos serviços especializados de milhares de crianças com a participação de suas famílias na tomada de decisões (Simpson, Jivanjee, Koroloff, Doerfler & García, 2001), reforçando, assim, a posição daqueles que advogam a favor de um sistema de atenção à primeira infância coordenado em nível federal.

Políticas de cuidado e educação da criança pequena no Brasil

A "Roda dos Expostos", uma instituição para educar crianças cujos pais não podiam fazê-lo, foi o primeiro tipo de atendimento oferecido às crianças pequenas no Brasil. Em função da alta taxa de mortalidade (cerca de 50%), houve um incentivo à criação de creches, no final do século XIX, para que os pais não abandonassem seus filhos na "Roda" (Montenegro, 2001). Apesar de terem ocorrido algumas iniciativas em anos anteriores, o ano de 1899 pode ser considerado como um primeiro marco no que diz respeito ao atendimento à criança pequena, pois nesse ano foi fundado o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro e a primeira creche para filhos de pais trabalhadores do país, nessa mesma cidade (Kuhlmann, 1998).

Os primeiros jardins de infância surgiram antes das creches, em 1883. Tratavam-se, porém, de instituições privadas e, como nos Estados Unidos da América, as crianças de famílias abastadas foram as que primeiro tiveram acesso a esse tipo de serviço. Com o intuito de diferenciá-los das creches – destinadas às crianças da classe trabalhadora – empregava-se com freqüência o termo "pedagógico" (Kuhlmann, 1998). Em outras palavras, os jardins de infância, para as crianças ricas, visavam à educação; as creches, para as crianças pobres, tinham por objetivo o "cuidado".

Ao longo do século XX, ocorreram várias transformações nesse cenário. A partir da década de 1920, o processo de industrialização provocou mudanças estruturais na sociedade brasileira semelhantes àquelas ocorridas nos Estados Unidos da América. Todavia, durante vários anos o governo não se preocupou em regulamentar e fiscalizar os serviços de atendimento à criança pequena. Mesmo quando a legislação trabalhista do governo do Presidente Getúlio Vargas (1930-1945) estabeleceu a obrigatoriedade da criação de creches para abrigar os filhos de mães trabalhadoras durante o período de amamentação, tal conquista legal não se tornou realidade.

Durante o regime militar (1964-1985), porém, o governo encarregou-se de construir algumas creches. Em consonância com as políticas americanas da época, o atendimento à criança pequena visava à promoção de uma educação compensatória. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (Lei 5.692), de 1971, a oferta de educação anterior à educação obrigatória (sete aos 14 anos) pretendia preparar as crianças oriundas das camadas sociais mais baixas para a alfabetização, a fim de diminuir os altos índices de fracasso escolar (Kramer, 1984). Essa mesma concepção estava presente em outros programas de atenção à primeira infância, os quais buscavam "compensar carências" (nutricionais, sanitárias, afetivas e sociais). Em 1977, a Legião Brasileira de Assistência (LBA) lançou o "Projeto Casulo" que visava à criação e à manutenção de creches comunitárias. Segundo Vasconcellos, Aquino e Lobo (2003), até esse projeto havia o predomínio da função assistencialista nas creches. "Acreditava-se em rígidas e inflexíveis etapas do desenvolvimento e priorizavam-se as questões ligadas à saúde das crianças (alimentação, nutrição e medicação)" (p. 244). Ainda segundo essas autoras, em 1981, o Ministério da Previdência e Assistência Social publicou um documento intitulado "Vamos Fazer uma Creche?", no qual propôs que as creches e pré-escolas assumissem, além da "função guardiã", a "função pedagógica". Dito de outra maneira, pela primeira vez, apareceu a proposta de superação da dicotomia entre "cuidar" e "educar" presente também nas políticas de atendimento à criança pequena no Brasil.

Com o processo de redemocratização do país e, especialmente, após a promulgação da nova Constituição (Brasil, 1988), o atendimento às crianças a partir do nascimento foi estabelecido como um direito da própria criança e de sua família e reconhecido como um dever do Estado, pela primeira vez na história do país. Dois anos mais tarde, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA de 1990 (Brasil, 1991) reiterou o direito de cidadania da criança, definindo seus direitos de proteção e educação. Finalmente, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (Lei 9.394), de 1996, a educação das crianças de zero a seis anos passou a integrar o sistema brasileiro de ensino. A LDB/96 define a Educação Infantil – destinada à faixa etária de zero a seis anos – como a primeira etapa da Educação Básica e afirma que essa "tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até os seis anos de idade, em seus aspectos físico, psíquico, intelectual e social" (art. 29). Neste mesmo artigo, fica estabelecido que os serviços de atendimento à criança pequena (creche e pré-escola) complementam a ação da família e da comunidade. Esta mesma lei também beneficia as crianças pequenas com necessidades especiais ao definir a educação especial como uma modalidade da educação escolar que permeia a todos os níveis de ensino. O artigo 58 prevê a existência de serviços especializados na escola regular e o atendimento educacional a partir da Educação Infantil. É também digno de nota que a resolução CNE/CNB Nº 2 (Brasil, 2001) propõe a participação da família na tomada de decisões quanto à necessidade e ao tipo de atendimento especial mais adequado à criança (art. 1º e art. 9º).

No que diz respeito às políticas de saúde específicas para as crianças pequenas, também ocorreram alguns avanços. O acompanhamento e avaliação contínua do crescimento e desenvolvimento passaram a ser compreendidos como um direito da criança e um dever do Estado e foram definidos como uma das cinco ações básicas do programa de Assistência à Saúde da Criança. Crescimento e desenvolvimento passaram a ser compreendidos como indissociáveis, mas distintos: "enquanto o crescimento se define por mudança de tamanho, o desenvolvimento caracteriza-se por mudanças em complexidades e funções" (Biblioteca Virtual do Ministério da Saúde, 2001). Nesse programa, compreende-se a saúde não apenas como ausência de doença, mas como a qualidade de vida oferecida à criança e considera-se importante levar em conta o contexto em que ela vive. O Ministério da Saúde criou o "Cartão da Criança" como um dos instrumentos necessários para implementar essas ações, além de promover cursos de capacitação para os profissionais. No entanto,

o último inquérito nacional de demografia e saúde realizado no país (PNDS, 1996) mostrou que, embora a maioria das crianças tenha o seu cartão e as mães o levem quando vão à consulta nos serviços de saúde, menos de 10% têm o peso da criança anotado e menor percentagem ainda têm a curva de crescimento da criança anotado no cartão. Isto demonstra que os profissionais de saúde têm dado pouco valor ao crescimento da criança, pouco fazendo em favor do bom desenvolvimento da criança. (Biblioteca Virtual do Ministério da Saúde, 2001)

Em nosso país, como nos Estados Unidos da América, parece que os pediatras não dispõem de formação e instrumentos adequados para diagnosticar problemas de desenvolvimento.

Semelhanças e diferenças entre os Estados Unidos da América e Brasil

Essa breve retrospectiva histórica das políticas de atenção às crianças pequenas nos Estados Unidos da América e no Brasil permite-nos observar algumas semelhanças e diferenças entre os dois países, tanto no que diz respeito às raízes históricas quanto aos avanços recentes. Explicar o porquê disso encontra-se além dos propósitos deste artigo, mas gostaríamos de destacar alguns dados que nos chamam a atenção.

Desde suas origens, percebe-se uma diferença entre os serviços destinados às crianças provenientes de famílias de pais trabalhadores e àquelas de famílias abastadas. Para as primeiras, os serviços tinham, principalmente, uma "função guardiã" (alimentar, proteger etc); para as segundas, os serviços visavam, sobretudo, ao desenvolvimento e à educação das crianças, ambos entendidos como parte de um processo mais amplo de preparação para a vida. Quando a "função educativa" foi introduzida nos primeiros (quase simultaneamente nos Estados Unidos da América e no Brasil), isto foi feito com um objetivo compensatório de "carências" (nutricionais, sociais, culturais etc) e objetivava, principalmente, a preparação para a escola. Dito de outra maneira, a educação foi reduzida à escolarização.

Nos dois países, o cuidado e a educação das crianças pequenas foram, inicialmente, compreendidos como um dever primordial da família e, assim, os pais que precisavam trabalhar para garantir a sua sobrevivência e a de seus filhos eram considerados incapazes ou portadores de alguma patologia (Howard & cols., 2001). Todavia, enquanto o Estado americano esteve sempre de alguma forma implicado no atendimento à criança pequena, houve por muito tempo uma omissão do Estado brasileiro no que diz respeito a esse assunto.

É interessante ainda observar que, embora haja uma distância de quase um século entre os primeiros serviços destinados à criança pequena nos Estados Unidos da América e no Brasil, a distância temporal entre as políticas estabelecidas e os desafios a serem enfrentados, nos dois países, diminuíram ao longo do século XX. Dentre as primeiras, gostaríamos de ressaltar, além da educação "compensatória" citada anteriormente, as políticas de educação especial e de avaliação contínua da saúde da criança. No que diz respeito aos segundos, chama atenção a semelhança quanto às dificuldades para acompanhar o desenvolvimento das crianças e identificar eventuais problemas.

Quanto às diferenças recentes entre os dois países, gostaríamos de assinalar o fato de que, enquanto no Brasil os serviços de cuidado e educação das crianças de zero a seis anos foram incorporados ao sistema de educação (desde a LDB de 1996), nos Estados Unidos da América apenas os jardins de infância foram incorporados ao sistema de educação. Para as crianças de zero a cinco anos, não existe um sistema único, mas uma variedade de serviços, critérios de elegibilidade, fontes de financiamento e diversas agências governamentais são responsáveis por sua regulamentação nos diferentes estados (Bowman & cols., 2001; Cohen, 1996; Lerner, Rothbaum, Boulos & Castellino, 2002; National Institute for Early Education Research, 2003; National Prekindergarten Center, 2004).

Cuidado e educação: integrar ou reconceitualizar?

Diversos autores têm insistido na necessidade de integrar cuidar e educar no atendimento à criança pequena (Brauner & cols., 2004; Rossetti-Ferreira, 1998; Scarr & Weinberg, 1986; Vasconcellos & cols., 2003). A inseparabilidade de cuidar e educar como um princípio básico que deve reger as políticas públicas de atendimento à primeira infância aparece tanto nas diretrizes estabelecidas para a Educação Infantil pelo Ministério da Educação do Brasil (Brasil, 1998a) quanto no relatório do Committee on Early Childhood Pedagogy(Bowman & cols., 2001).

As propostas pedagógicas para as instituições de Educação Infantil devem promover em suas práticas de educação e cuidados a integração entre os aspectos fisicos, emocionais, afetivos, cognitivo/lingüísticos e sociais da criança, entendendo que ela é um ser total, completo e indivisível.(Brasil, 1998a, p. 12)

Uma premissa central deste relatório, a qual emerge diretamente da revisão da literatura, é que cuidado e educação não podem ser pensados como entidades separadas quando se trata de crianças pequenas. O cuidado adequado inclui o provimento de boa estimulação cognitiva, ambientes ricos em conversação e a promoção do desenvolvimento social, emocional e motor. Da mesma forma, a educação adequada para crianças pequenas pode ocorrer apenas em contextos de bom cuidado físico e calorosas relações afetivas. (Bowman & cols., 2001, p. 2)

Nossa revisão das políticas estabelecidas nos Estados Unidos da América e no Brasil indica que essa dicotomia entre cuidar e educar, presente na história de ambos os países, tem origem na diferença de serviços oferecidos às crianças das camadas sociais mais baixas e àquelas provenientes de famílias abastadas. Conforme disse Cerisara (1999):

[a] dicotomização entre as atividades com um perfil mais escolar e as atividades de cuidado revela que ainda não está clara uma concepção de uma criança como sujeito de direito, que necessita ser educada e cuidada, uma vez que ela depende dos adultos para sobreviver. (p. 16)

Compartilhamos a idéia de que a inclusão da Educação Infantil no sistema de ensino brasileiro significa um avanço importante no que diz respeito às políticas de atendimento às crianças pequenas (Kramer, 1984; Kuhlmann, 1998; Montenegro, 2001; Oliveira, 1996; Vasconcellos & cols., 2003). Nos Estados Unidos da América, inclusive, alguns autores têm proposto a integração dos serviços de atendimento à criança pequena ao sistema de ensino como uma forma de superar a dicotomia entre cuidar e educar (Brauner & cols., 2004; Zigler & Finn-Stevenson, 1996). No entanto, essa inclusão também implica riscos. Tanto autores americanos quanto autores brasileiros chamaram atenção para o fato de que a Educação Infantil difere do processo de escolarização e as escolas, tradicionalmente voltadas para este último, não estão adequadamente preparadas para atender às crianças pequenas (Cerisara, 1999; Goldberg, Schultz & Piel, 1996; Scarr & Weinberg, 1986; Vasconcellos & cols., 2003). A essa preocupação gostaríamos de acrescentar mais uma: a desvalorização histórica do cuidado no atendimento à criança pequena e a forma vaga como tem sido definido.

Em 1998, além de estabelecer as diretrizes para a educação e cuidado das crianças entre zero e seis anos de idade (Brasil, 1998a), o Ministério da Educação publicou um documento denominado Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil – RCNEI (Brasil, 1998b) para auxiliar na implementação de programas de Educação Infantil em todo o país. Esse documento tem sido criticado porque: 1) retorna à idéia de que a educação da criança pequena visa compensar deficiências e preparar a criança para a escola e 2) não está de acordo com as determinações legais.

Ao produzir um documento com formato curricular para a educação da criança de zero a seis anos, o MEC desconsiderou as determinações expressas na atual LDB/96 quanto a quem compete a elaboração de currículos e qual o papel da esfera federal. Além disso, a ampla divulgação do RCNEI, sem se fazer menção aos documentos legítimos que são as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), desacata as determinações oficiais. (Vasconcellos & cols., 2003, p. 246)

Todavia, tão preocupante quanto isso, é a forma vaga como o cuidado foi definido.

O cuidado é um ato em relação ao outro e a si próprio que possui uma dimensão expressiva e implica em procedimentos específicos. (...) Para cuidar é preciso antes de tudo estar comprometido com o outro, com sua singularidade, ser solidário com suas necessidades, confiando em suas capacidades. Disso depende a construção de um vínculo entre quem cuida e quem é cuidado.(Brasil, 1998b, pp. 24-25)

Como disse Montenegro (2001), o cuidado é o aspecto "mais nebuloso" da Educação Infantil "como conceito e como prática" (p. 17). Em função disso, acreditamos que não basta integrar cuidado e educação, mas é preciso que se estabeleça um conceito de cuidado no atendimento à criança pequena: um conceito que não reduza o cuidar ao atendimento de necessidades básicas (alimentação, higiene, segurança etc) nem seja ideológico (o "cuidado" é apenas para os pobres; como se a necessidade de cuidado não fosse inerente à condição humana, mas somente os pobres precisassem ser cuidados!).

 

Um Conceito de Cuidado: Uma Contribuição aos Direitos da Criança

Nossa breve revisão das políticas de atendimento à criança pequena nos Estados Unidos da América e no Brasil mostrou uma crescente similaridade entre os dois países. Segundo Bowman e cols. (2001), os Estados Unidos da América têm uma longa tradição de pesquisa nessa área, o que tem possibilitado o estabelecimento de padrões de qualidade e a implementação de programas baseados em evidências de pesquisa. De fato, inúmeros pesquisadores, de diferentes disciplinas, têm-se dedicado a estudar os primeiros anos de vida e gerado um significativo acúmulo de conhecimentos. Esses conhecimentos têm produzido uma crescente consciência de que abordagens transdisciplinares e a coordenação de diferentes serviços são necessárias para dar conta da complexidade da tarefa de cuidar e educar as crianças pequenas (Campbell, 2002; Raver, 2002; Shelton & Stepanek, 1994; Shelton & cols., 2000, Simpson & cols., 2001; Shonkoff & Phillips, 2000). Outras nações, inclusive, têm utilizado esses conhecimentos no estabelecimento de suas políticas e programas, conforme sugere nossa análise. No Brasil, embora não se tenha essa mesma tradição, a produção científica nessa área tem crescido nos últimos anos (Rocha, 1999).

No entanto, pode-se constatar que existe uma disparidade entre o que se sabe e o que se faz. Segundo Howard e cols. (2001), os Estados Unidos da América "(...) ficam atrás de quase todas as outras nações industrializadas do mundo" (p. 66) quanto ao atendimento à criança pequena. Não apenas a demanda é maior que a oferta, mas também a qualidade dos serviços oferecidos deixa a desejar. Por exemplo, em um estudo realizado peloNational Institute of Child Health and Human Development, apenas 34% dos grupos observados em centros de atendimento a crianças de três anos atingiam padrões de qualidade (Brauner & cols., 2004). Em uma pesquisa sobre o atendimento a crianças de três e quatro anos (os chamados prekindergarten programs), o National Institute for Early Education Research (2003) verificou que 10 dos 50 estados americanos não investem nesse tipo de programa e, além disso, que a qualidade dos serviços varia amplamente naqueles que o fazem. Um dos resultados que chama a atenção nesse estudo é o fato de que apenas 18 estados requerem quatro anos de educação superior para os professores, o que é exigido por todos os estados para professores de jardim de infância (kindergarten) e recomendado pelo National Research Council.

No Brasil, o direito da criança, desde o seu nascimento, ao cuidado e à educação foi estabelecido em lei (Brasil, 1988; 1991; 1996). O direito, porém, está longe de ser um fato. Em 2003, um milhão e 200 mil crianças freqüentavam creches e 5 milhões e 600 mil estavam em pré-escolas (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2004). Se considerarmos os dados do último censo (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2000), isso significa que apenas 29% das crianças entre zero e seis anos estavam sendo atendidas (aproximadamente 9% das crianças de zero a três anos e cerca de 56% das crianças de quatro a seis anos). Além disso, os dados apresentados por Rossetti-Ferreira e cols. (2002) indicam que hoje, como no século XIX, as crianças das famílias de classe média e média-alta são as principais beneficiadas. Como nos Estados Unidos da América, não somente a quantidade, mas também a qualidade dos serviços é motivo de preocupação. Em nosso país, o lema "atender pobremente a pobreza" (Rossetti-Ferreira & cols., 2002) não é um privilégio da Educação Infantil, mas perpassa outros níveis de ensino (Freitas, 1988; 2003; Silva, 1984) e está presente também em outros serviços, conforme indicam os dados do Ministério da Saúde (Crescimento e Desenvolvimento, 2001). Isso nos leva a concordar com Goldberg e cols. (1996) quando assinalam que a integração do atendimento à criança pequena ao sistema de ensino por si só não garante a sua qualidade.

Evidentemente, um conceito de cuidado não é suficiente para transformar o atendimento à criança pequena, seja nos Estados Unidos da América, seja no Brasil. Todavia, nossa revisão das políticas de cuidado e educação indica que o lema "atender pobremente a pobreza" não apenas subjaz as políticas neoliberais do Banco Mundial (Penn, 2002; Rossetti-Ferreira & cols., 2002), mas também faz parte da história dos dois países e talvez por isso ecoe nos corações e mentes de (alguns) nossos conterrâneos. Nessa breve revisão, observa-se também a desvalorização histórica da atividade de cuidar, tanto através de sua redução ao atendimento de necessidades básicas da criança quanto mediante a sua vinculação à pobreza. Não bastam práticas criativas; é necessário (embora não seja suficiente) um processo de (re)conceitualização do cuidado para fazer frente ao discurso e a prática de "atender pobremente a pobreza".

Nesse processo, deve-se articular os resultados de pesquisa sobre o desenvolvimento da criança, a psicopatologia do desenvolvimento, o desenvolvimento do cérebro, as possibilidades e limites dos programas de atendimento à criança pequena, pois são nessas áreas que se tem produzido conhecimentos que mostram que as crianças não esperam entrar na escola para aprender a conhecer e interpretar o mundo, amar e relacionar-se com os outros. Essa articulação, por sua vez, deve ocorrer em três diferentes níveis: das políticas públicas, da produção de conhecimentos e das práticas.

1. No nível das políticas públicas – O governo federal, em conjunto com estados e municípios, deve definir políticas articuladas para a infância. A falta de coordenação entre as políticas de saúde e educação é outro aspecto sugerido por nossa revisão das políticas de atendimento à criança pequena (uma análise mais detalhada das políticas de saúde deve ainda ser feita) e tem sido apontada como um obstáculo à qualidade dos serviços prestados (Corsino, Nunes & Kramer, 2003; Shonkoff & Phillips, 2000; Simpson & cols., 2001).

2. No nível da produção de conhecimentos – Através do incentivo a pesquisas interdisciplinares, especialmente àquelas que constituam campos de intersecção entre saúde e educação, a fim de que se construa um conceito de cuidado no atendimento à criança pequena: um conceito que não reduza o cuidado ao atendimento de necessidades básicas nem o restrinja a medidas para curar doenças, mas um conceito que vise à promoção do desenvolvimento da criança, em suas várias dimensões. Tal conceito deve ser sensível à diversidade cultural sem, contudo, mascarar sob este termo as desigualdades sociais existentes tanto no Brasil como nos Estados Unidos da América5 (Tudge & cols., 2004; Tudge, no prelo).

3. No nível das práticas – O estabelecimento de parcerias entre profissionais das áreas de educação e de saúde. O psicólogo, por exemplo, não deve ser chamado para "consertar as crianças problemas", mas sim cooperar com os professores, pais e outros profissionais na busca de soluções para os desafios cotidianos que a tarefa de cuidar e educar nos impõe (Paulon & cols., no prelo; Shelton & cols., 2000).

Acreditamos que a discussão aqui apresentada possa auxiliar na compreensão de por que os conhecimentos sobre a importância dos primeiros anos de vida produzidos, por exemplo, pela psicologia do desenvolvimento não foram ainda suficientemente incorporados ao atendimento à primeira infância nos Estados Unidos da América e no Brasil. Esperamos que nossas propostas contribuam para garantir que todas as crianças sejam preparadas não apenas para a escola, mas também para a vida.

 

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1 Este artigo resulta de pesquisa realizada no Center for Youth, Family, and Community Partnerships, University of North Carolina at Greensboro, a qual contou com o apoio da CAPES por meio da concessão de uma bolsa de estudos para estágio pós-doutoral à primeira autora. As autoras agradecem a Claudia Cruz e Jonathan Tudge por seus comentários e sugestões. 
2 Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Rua Ramiro Barcelos, 2600, Porto Alegre, RS, Brasil 90035-003. E-maillfreitas@orion.ufrgs.br 
3 Early Childhood and Family Portal: http://www.portal.unesco.org/education/ev.php 
4 Nos Estados Unidos, são consideradas pré-escolares as crianças de até cinco anos; no Brasil, as crianças até seis anos. 
5 Em 2000, aproximadamente 17% das famílias com crianças pré-escolares viviam abaixo da linha oficial de pobreza nos Estados Unidos (U.S. Bureau of the Census, 2000); no Brasil, 48,6% das crianças entre zero e seis anos viviam com adultos (pais ou responsáveis) que ganhavam até dois salários mínimos (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2000).


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722005000200010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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