Artigos Científicos

Raciocínio Lógico, Experiência Escolar e Leitura com Compreensão

Mª. da Graça Bompastor Borges Dias

8 de junho de 2015

Psic.: Teor. e Pesq. v.16 n.1 Brasília jan./abr. 2000

 

Raciocínio Lógico, Experiência 
Escolar e Leitura com Compreensão1

Mª. da Graça Bompastor Borges Dias2 
Universidade Federal de Pernambuco

 

 

Resumo - As habilidades do raciocínio silogístico usadas para alcançar conclusões e detectar incoerência em textos foram avaliadas em 30 crianças de escolas onde contar histórias e discutí-las era freqüentemente usado (Grupo Experimental) e em 30 crianças de escolas onde esta forma de atividade era escassa (Grupo Controle). As crianças tinham de 5 a 6 anos de idade, de quatro classes de jardim-de-infância de duas escolas particulares de Recife. Foram testadas no início, no fim do ano escolar e no início do ano seguinte, quando estavam na primeira série. Na primeira fase, o Grupo Controle apresentou resultados um pouco melhores do que o Grupo Experimental. Na segunda e terceira fases, os resultados foram significativamente melhores para o Grupo Experimental e as diferenças foram marcantes quando os conteúdos dos silogismos contradiziam fatos empíricos. Argumenta-se que contar histórias e a discussão das mesmas pode ser um bom meio para desenvolver as habilidades do raciocínio das crianças e a compreensão de leitura.

Palavras-chave: raciocínio lógico; compreensão de histórias; silogismos.

Logical Reasoning, School Experience 
and Reading with Comprehension

Abstract - Syllogistic reasoning abilities utilized to reach conclusions and to detect incoherence in texts which were evaluated among 30 children from schools where story telling and its discussion was frequently used (Experimental Group), and in 30 children from schools where this kind of activity was inexistent (Control Group). The children were from 5 to 6 years-old, who were, enrolled in four kindergarden classes of two private schools in Recife. They were tested at the beginning, at the end of the school year, and at the beginning of the following year, when they were enrolled in the first grade of elementary school. In the first phase, the control group presented slightly better results than the experimental group. In the second and third phases, the results were significantly better for the experimental group, and the differences were specially observed when the content of the syllogisms contradicted empirical facts. It is argued that story telling and discussion activities may be a good way to develop children's reasoning abilities and the reading comprehension.

Key words: logical reasoning; story comprehension; syllogisms.

 

 

Donaldson (1978) demonstrou a importância da consciência metalingüística no sucesso da transição da criança do pré-escolar, e seu estreito relacionamento com a aquisição da leitura foi constatado por Tunmer e Bowey (1984).

Consciência metalingüística é definida como a habilidade de refletir e manipular aspectos estruturais da linguagem falada, sendo a linguagem aqui tratada como um objeto do pensamento e não simplesmente como meio de compreensão e produção de sentenças.

Este tipo de funcionamento mental, a consciência metalingüística envolvida em operações metacognitivas, serve de base a quatro tipos de habilidade metalingüística, cada uma delas necessária para a criança tornar-se um bom leitor. Assim, as diferentes manifestações da consciência metalingüística podem ser classificadas em quatro categorias: consciência fonológica, consciência da palavra, consciência da forma e consciência pragmática. A consciência fonológica e a da palavra referem-se à consciência das sub-unidades da linguagem falada (os fonemas e as palavras); a consciência de forma refere-se à representação estrutural do significado literal ou lingüístico associado a uma elocução, e a consciência pragmática refere-se ao relacionamento que se obtém entre um conjunto de proposições que incluem os significados literal e intencional como membros (Tunmer & Bowey, 1984).

Esses autores sugerem que as quatro categorias da consciência metalingüística apresentariam uma ordem seqüencial de importância no progresso de um leitor iniciante a um leitor hábil. Esta ordem seria: consciência de palavra, consciência fonológica, consciência de forma e, finalmente, consciência pragmática. A ordem de emergência dessas habilidades, segundo Rozin e Gleitman (1977), dar-se-ia em função do nível de representação lingüística que está sendo adquirido, no qual a representação fonológica constituiria o nível mais baixo e a semântica e o pragmático constituiriam os níveis mais altos.

As consciências fonológica, léxica e sintática são puramente lingüísticas e estão confinadas ao conhecimento dos aspectos específicos dos sistemas lingüísticos, enquanto a consciência pragmática envolve aspectos que vão além das considerações lingüísticas. Pois, a fim de compreender o que está lendo, a criança, além de organizar palavras dentro de unidades estruturais maiores, precisa também apreender as relações que existem entre os grupos de sentenças e o contexto no qual as sentenças estão inseridas.

Os estudos sobre a consciência pragmática em crianças têm sido seletivos e tendo como alvo principal fatores lingüísticos. De fato, as pesquisas sobre consciência pragmática em crianças têm como objetivo três áreas distintas. A primeira área de estudo diz respeito à consciência da criança com relação à adequação da mensagem quando a mesma é confrontada com mensagens ambíguas. A segunda área tem como objetivo estudar a consciência da criança para a necessidade do orador modificar seu discurso a fim de se ajustar às exigências da situação. A terceira área preocupa-se com a habilidade da criança em monitorar e refletir sobre sua compreensão de uma proposição, ou de um conjunto de proposições e também com a habilidade da criança em detectar inconsistências nas informações apresentadas.

A primeira área tem sido alvo de inúmeras pesquisas (ver por exemplo, Asher, 1976; Bearison & Leveu, 1977; Flavell, Speer, Green, & August, 1981; Markman, 1977; Pratt & Bates, 1982; Robinson & Robinson, 1981, conforme citados em Pratt & Nesdale, 1984). A segunda área tem sido menos pesquisada, podendo-se citar os estudos de Shatz e Gelman (1973, 1977); Bates (1976); Robinson e Robinson (1981), (citados em Pratt & Nesdale, 1984). A terceira área, na qual se insere o estudo aqui relatado, também possui poucos estudos.

A habilidade de refletir sobre o inter-relacionamento entre proposições é avaliada de duas maneiras. De um lado encontramos os estudos que estão preocupados em como os sujeitos fazem inferências lógicas per se; de outro lado encontramos a avaliação de proposições inseridas em textos, a qual tem sido a preocupação dos estudos sobre a consciência pragmática.

No primeiro caso, muitos estudos têm demonstrado que crianças bem novas são capazes de operar sobre materiais com a finalidade de fazer inferências lógicas (e.g. Hawkins, Pea, Glick & Scribner, 1984; Roberge & Paulus, 1971) e o fazem de modo correto mesmo quando o conteúdo das premissas é inconsistente com suas experiências diárias. Isto acontece quando o contexto da tarefa envolve brincadeira de faz-de-conta (Dias & Harris, 1988a, 1988b, 1989, 1990). Na maioria dos estudos deste grupo são utilizados problemas silogísticos. Estes são constituídos por duas premissas e uma conclusão, muitas vezes sob forma de pergunta, e a criança tem como tarefa concordar ou não com a validade da conclusão apresentada, ou apresentar sua própria conclusão. Outros estudos deste grupo utilizam silogismos inseridos em textos (e.g. Kuhn, 1977; Piper, 1985; Walker, 1985, citado em Jennings & Walker, 1987), que é o procedimento usual na avaliação de inconsistências em textos de histórias, uma das preocupações dos estudiosos da consciência pragmática.

Dentre os estudos sobre a consciência pragmática, Markman (1979) objetivou examinar em crianças a influência do processo inferencial requerido na detecção de inconsistências em informações. Em seu primeiro estudo, ela apresentou a crianças de 8, 9 e 10 anos de idade pequenos textos com inconsistências lógicas, sendo que em uma das condições a inconsistência estava implícita e em outra explícita. Os argumentos lógicos tinham a forma de Modus Ponens:3

Se P é verdadeiro então Q é verdadeiro.

P é verdadeiro

A partir dessas duas premissas conclui-se que Q é verdadeiro. A fim de criar a inconsistência, Markman (1979) introduziu nas histórias dados que afirmavam que Q não era verdadeiro. Por exemplo, o texto apresentado incluía as seguintes sentenças dos argumentos lógicos:

Se está escuro, os peixes não podem ver.

Está escuro no fundo do oceano.

Pela regra de inferência válida, Modus Ponens, a conclusão seria de que "os peixes não podem ver no fundo do oceano". No entanto, estava relatado no texto que "os peixes que vivem no fundo do oceano podem ver a cor de sua comida", o que constitui a negação de Q (os peixes não podem ver).

Os resultados mostram que crianças de até 10 anos e 4 meses de idade geralmente não conseguem detectar as inconsistências lógicas nas histórias, principalmente na condição implícita. Segundo Markman (1979) as crianças em geral não monitoram sua compreensão para consistência devido ao esforço e concentração presentes em vários sub-processos que também estão envolvidos na leitura. Outro ponto abordado por Markman (1979) é o de que as crianças tendem a questionar a validade empírica das declarações individuais e não examinam a estrutura lógica do argumento todo. Além disso, a familiaridade do conteúdo dos argumentos também pode afetar a compreensão de texto.

Na tentativa de testar esta hipótese Harris, Kruithof, Terwogt e Visser (1981) apresentaram a crianças de 8 e 11 anos de idade textos com inferências familiares que continham em uma das linhas sentenças que não conduziam com o tema geral da história. Por exemplo, em uma das histórias dois meninos estavam brincando com um barquinho de brinquedo e havia a sentença: os dois meninos sobem a bordo. Foi medido o tempo de leitura das crianças em cada linha do texto e notou-se que, em ambos os grupos de idade, a linha inconsistente do texto levou significativamente mais tempo para ser processada. Também foi pedido às crianças para detectar qual a linha do texto que não combinava com o resto da história. As crianças de 8 anos de idade conseguiram, de um total máximo possível de uma média de 4.0, 3.1 identificações corretas e as de 11 anos fizeram 3.8 identificações corretas. Conclui-se, então, que quando a tarefa é claramente baseada nas experiências das crianças, a detectação de inconsistências é realizada acuradamente.

De acordo com Tunmer, Nesdale e Pratt (1983) vários fatores são responsáveis pelo baixo desempenho encontrado no estudo de Markman (1979). Um dos fatores seria o fato dos três componentes do argumento lógico (duas premissas e a conclusão) estarem misturadas em nove sentenças, o que deve ter sobrecarregado a memória a curto prazo. Outro fator seria o conteúdo usado neste estudo onde, na maioria das histórias, foi utilizado comportamento animal inconsistente. Como desde cedo as crianças aprendem que, muitas vezes, os animais se comportam de modo estranho e misterioso, isto pode ter feito com que as mesmas não levassem em consideração as inconsistências citadas. Com estes aspectos em mente, Tunmer e cols. (1983) apresentaram a crianças de 5, 6 e 7 anos de idade histórias consistentes ou inconsistentes sendo colocadas no texto, explícita ou implicitamente, com as sentenças correspondendo a argumentos envolvendo Modus Ponens, como por exemplo:

À noite, você não pode ver o sol (Jane estava com sono, então, ela foi para a cama). No meio da noite Jane saiu da cama e foi olhar pela janela. Ela pode ver as estrelas piscando no céu (O sol estava brilhando no céu).

Na condição explícita, a primeira sentença (antes do 1o parêntesis) de cada história representava um fato compatível com a experiência da criança (1a premissa de um silogismo do tipo Modus Ponens). Já a segunda sentença correspondia a 2a premissa. A terceira era consistente (antes do 2o parêntesis) ou inconsistente (dentro do 2o parêntesis) com as duas primeiras.

Na condição implícita, a primeira sentença (dentro do 1o parêntesis) era introdutória e neutra, substituindo aquela da condição explícita (Por ex. "À noite, você não pode ver o sol").

As histórias, todas com conteúdo familiar, eram apresentadas por um boneco e depois da apresentação era pedido à criança para dizer se a história era boa ou boba e o por que de sua resposta. No final, uma série de questões de sondagem era apresentada com a finalidade de assegurar que as crianças eram conhecedoras dos princípios gerais envolvidos nas histórias. Por exemplo: "Você pode ver o sol no céu à noite?" Os resultados revelam que crianças de 5 anos obtiveram 81% de acerto em histórias inconsistentes explícitas e 63% quando as passagens eram implícitas. No entanto, as crianças de 6 e 7 anos obtiveram 80% e 90% de acerto em inconsistências explícitas e implícitas, respectivamente.

Pode-se notar, então, que a habilidade da criança em detectar inconsistências começa mais cedo do que foi considerado por Markman (1979) e que o desempenho da criança é influenciado tanto pela natureza da tarefa como pelo modo como as premissas e as conclusões são apresentadas, e pela expectativa da criança para com a situação.

Este último aspecto foi mais profundamente explorado por Pratt, Tunmer e Nesdale (no prelo). Neste estudo também foi examinado o efeito do comprimento da comunicação na descoberta de inconsistências. Os resultados mostram que crianças de 5 anos de idade detectam mais as inconsistências em histórias longas quando elas estão esperando que estas sejam sem sentido. As crianças de 6 anos de idade são mais hábeis em detectar inconsistências que as mais novas e o fazem independentemente de suas expectativas sobre o sentido da história.

O papel do conteúdo na detecção de inconsistências foi estudado por Pratt, Tunmer e Nesdale (no prelo). Três tipos de histórias foram apresentadas a crianças de 5 e 6 anos de idade: histórias baseadas nas experiências das crianças, histórias neutras (com informações novas) e histórias que contradiziam a experiência das crianças. No primeiro e segundo tipos de história, baseadas em experiências conhecidas e novas, as crianças mais jovens julgaram corretamente 70% delas em cada uma dessas duas condições, enquanto que as crianças mais velhas alcançaram 90% de julgamentos corretos. No entanto, nas histórias com conteúdo contraditório, as crianças de 5 anos julgaram corretamente apenas em 54% dos casos e as de 6 anos, em 78%. Os autores concluem que o tipo de conteúdo das histórias de fato influenciam as crianças na detectação de inconsistências.

Assim, a partir dos resultados desses estudos pode-se dizer que, apesar da influência de vários fatores, a consciência pragmática para inconsistências está bem estabelecida em crianças de 6 anos de idade. Esta habilidade é encontrada em histórias longas, em histórias com conteúdo contrário às experiências das crianças e em histórias nas quais nenhuma pista sobre inconsistência é oferecida previamente.

Os estudos até agora descritos tiveram como principal objetivo detectar conteúdos inconsistentes. Porém, em geral, os textos que são apresentados às crianças na escola contêm mensagens coerentes, embora muitas vezes esta coerência esteja implícita. Neste caso também se faz necessário integrar uma variedade de proposições distintas e derivar uma variedade de conclusões a fim de entender a mensagem do autor. Em outras palavras, a criança precisa "preencher os vazios" das mensagens fazendo inferências e pressuposições baseadas em seu conhecimento anterior.

O estudo de Johnson e Smith (1981) teve como principal objetivo verificar a habilidade da criança em apreender as informações implícitas em um texto. Fizeram parte deste estudo crianças de 8 e 9 anos de idade que receberam textos de leitura com várias premissas inseridas dentro de um mesmo parágrafo ou em parágrafos separados e cujas conclusões estavam implícitas ou explícitas. Em uma terceira condição, as crianças receberam várias premissas que não estavam inseridas em uma história, mas eram apresentadas como sentenças isoladas. Os resultados demonstram que as crianças mais novas alcançaram 53% de respostas corretas nas histórias explícitas, enquanto as crianças mais velhas conseguiram 78%. Nas histórias implícitas, as mais novas obtiveram 46% e as mais velhas 60% de acerto. Já nas sentenças isoladas, as crianças mais novas conseguiram 75% de acerto e as mais velhas 85% de acerto. Para os autores, o efeito da separação das premissas pelos parágrafos no desempenho das crianças mais novas não é devido simplesmente à pouca memória da informação das premissas. O que acontece é que as crianças mais novas parecem não conseguir integrar a informação do texto quando a mesma está contida em cenas separadas na história. Concluem então os autores que

As crianças mais velhas podem fazer mais inferências que as mais novas em uma tarefa de compreensão de texto longo, porque as crianças mais velhas estrategicamente recuperam informações anteriores a fim de dar maior sentido ao input geral. Diferentemente, as crianças mais novas podem combinar os conteúdos dos componentes apenas quando o segundo destes componentes ocorre para "evocar" o primeiro da memória a longo prazo, ou quando os dois estão temporariamente perto e, assim, conjuntamente presente na memória de trabalho. (p.1221)

Comparando os dados obtidos nos estudos sobre a capacidade de fazer inferências lógicas per se com os de estudos sobre a consciência pragmática, vemos que crianças bem jovens são capazes de fazer inferências silogísticas quando as premissas lhes são apresentadas isoladamente, fora de um texto mais amplo. No entanto, são necessários alguns anos mais para que este tipo de raciocínio lógico possa ser utilizado para derivar conclusões, ou detectar incoerências referentes a premissas contidas em uma história ou texto. Parece ocorrer neste caso um fenômeno semelhante ao discutido por Bryant (1973) com relação à inferência transitiva e à capacidade de utilizar esse tipo de raciocínio lógico para realizar tarefas de medida: a criança mostra-se capaz de fazer inferências quando as premissas são apresentadas, mas só bem mais tarde consegue realizar tarefas de medição espontânea onde o termo médio é utilizado para comparar o comprimento de dois outros objetos. Bryant argumenta que a criança já dispõe da lógica porém precisa aprender como e quando deve utilizá-la.

Se o mesmo fenômeno apontado por Bryant (1973) ocorre com silogismos dos tipos aqui discutidos, é possível que a criança precise de experiências específicas com dados apresentados no contexto de histórias para saber quando e como utilizar sua capacidade lógica. Histórias constituem um contexto interessante para discutir este problema. O mundo descrito em histórias é um mundo de faz-de-conta onde qualquer coisa pode acontecer, inclusive incoerências, tanto entre os fatos relatados e o mundo real como entre os fatos relatados entre si. Espera-se, portanto, que, na escola, alguma discussão sobre os textos das histórias ocorra e esse tipo de experiência pode ser útil para que a criança passe a ver a necessidade de coerência lógica entre os fatos relatados. Palincsar e Brown (1984) mostraram, através da discussão entre as crianças, como se consegue uma melhor leitura, com ênfase na compreensão lógica de textos.

No entanto, nem toda escola parece estar enfatizando este tipo de discussão. No Brasil, embora algumas experiências recentes venham recomendando o uso de histórias e sua discussão como forma de melhorar o ensino da leitura, é conhecida a inadequação de textos utilizados nos primeiros anos escolares. Além do mais, o hábito de contar histórias e discutir com as crianças não parece estar de modo algum implantado. Isto proporciona a oportunidade de realizar um estudo sobre a emergência da capacidade da criança de utilizar o raciocínio silogístico na compreensão de textos ou histórias, (terceira área de estudo da consciência pragmática - ver p.2) bem como sobre o papel de diferentes tipos de experiências escolares sobre as habilidades lógicas da criança.

Assim, este estudo tem como objetivos específicos:

1. Analisar as relações entre a capacidade de resolver silogismos apresentados per se e a capacidade de utilizar o raciocínio silogístico para: (a) tirar conclusões a partir de premissas contidas em histórias; (b) detectar incoerências entre fatos apresentados dentro de uma história.

2. Analisar a influência da experiência escolar em classes de alfabetização que enfatizam, ou não o uso de histórias e sua discussão, em relação ao desenvolvimento do uso do raciocínio silogístico per se e para tirar conclusões e detectar incoerências em histórias.

 

Método

Participantes

Fizeram parte deste estudo 60 crianças de quatro classes de alfabetização, sendo 30 crianças de duas escolas que contam e discutem histórias todos os dias, grupo 1 (G1) e 30 crianças de duas outras escolas onde a discussão de histórias não ocorre, ou não é atividade importante, sendo realizada apenas uma vez por semana, grupo 2 (G2). A escolha dessas escolas foi feita a partir de entrevistas com professoras e de observações sobre suas atuações. Todas as quatro escolas atendem populações de nível sócio-econômico (NSE) médio e alto da cidade do Recife, diferindo entre si na ênfase dada à leitura sistemática de histórias.

Material

Foram utilizados 12 argumentos lógicos na forma de Modus Ponens, sendo que quatro continham fatos conhecidos, coerentes com as experiências das crianças, outros quatro continham fatos desconhecidos e os demais continham fatos contrários às suas experiências. De cada grupo de quatro silogismos, dois continham conclusões coerentes e dois continham conclusões incoerentes com as premissas (ver Quadro 1).

 

 

Também foram usados 12 textos com argumentos lógicos inseridos em histórias, sendo que quatro continham fatos conhecidos, coerentes com as experiências das crianças, quatro continham fatos desconhecidos e quatro continham fatos contrários às experiências das crianças. Metade dos textos continha conclusões coerentes e a outra metade conclusões incoerentes (ver Quadro 2). As perguntas de sondagem, também constantes nosQuadros 1 e 2, foram feitas antes dos silogismos e das histórias e foram usadas para estabelecer os fatos que os sujeitos já sabiam.

 

 

Procedimento

Os dois grupos de crianças foram submetidos às tarefas do estudo em três fases diferentes. Na primeira fase, no meio do ano letivo da classe de alfabetização, as crianças foram testadas nos silogismos isolados e nos textos com os silogismos inseridos em histórias. Cada criança foi examinada oralmente e individualmente em duas sessões com intervalos de uma semana entre as mesmas. Antes do experimento começar, foram feitas as Perguntas de Sondagem. Depois disso, o experimentador dava as seguintes instruções:

"Eu vou ler para vocês algumas historinhas sobre coisas engraçadas. Porém, vamos fazer de conta que tudo é verdade". O experimentador então lia cada silogismo.

Após a leitura do silogismo, o experimentador pedia para a criança repetí-lo. Se a criança não conseguia dizer o silogismo na ordem certa, o mesmo era repetido até no máximo três vezes. Depois era perguntado se a criança concordava, ou não com a conclusão do problema: "Isto é certo, ou errado?". Finalmente era pedido para a criança justificar sua resposta: "Por que você disse que estava certo?", ou "Por que você disse que estava errado?". Em seguida era perguntado à criança: "Como você sabe disso?" Esta última questão era feita a fim de esclarecer de onde vinha o conhecimento da criança.

Na segunda fase, no fim do ano letivo, as mesmas crianças foram retestadas nas habilidades silogísticas com material similar e seguindo o mesmo procedimento utilizado na primeira fase. Participaram desta segunda fase as mesmas crianças da primeira etapa, com exceção de seis crianças que saíram das escolas, sendo três delas de escolas que contam e discutem histórias e três de escolas que usam métodos tradicionais. Dessa forma, participaram do segundo estudo 54 crianças que estavam no final da alfabetização, sendo 27 para cada tipo de escola.

Na terceira fase, no fim do ano letivo subsequente, i.e., na 1a série do ensino fundamental, as crianças foram retestadas nas habilidades silogísticas com material similar (Quadros 1 e 2) e com o mesmo procedimento utilizado na primeira e segunda fases, a fim de se verificar a influência da alfabetização nesta habilidade. Em virtude de mudança de escola, a amostra neste segundo ano ficou reduzida a 19 crianças no G1 e 22 crianças no G2.

As respostas das crianças às perguntas de sondagem nas três fases indicam claramente que elas estavam familiarizadas com os princípios gerais presentes nos problemas conhecidos; não estavam familiarizadas com os princípios presentes nos problemas desconhecidos; e mantinham opiniões contrárias àquelas presentes nos problemas com fatos contrários.

 

Resultados

A análise dos resultados dos argumentos lógicos, inseridos em textos, ou não, foi feita em termos de número de erros e acertos e em termos de justificativa verbal apresentada pela criança para suas respostas. As justificativas foram classificadas usando os mesmos critérios utilizados por Scribner (1975) e Dias (1987). Justificativas teóricas são as respostas que se referem às informações presentes no silogismo na primeira e na segunda premissa de modo dedutivamente válido. Justificativas empíricas são aquelas que se referem ao conhecimento prático do mundo. Já justificativas arbitrárias são as explicações irrelevantes ou ausentes.

O desempenho em silogismos isolados e inseridos nos textos, como também as justificativas apresentadas foram comparados entre os dois grupos de crianças. Comparou-se, também, o desempenho das crianças em argumentos lógicos quando estes estavam, ou não inseridos em histórias.

 

 

Respostas aos silogismos nas três fases

As Tabelas 2 e 3 apresentam, respectivamente, as percentagens de respostas corretas em cada uma das três fases nos dois tipos de problemas silogísticos (isolados e inseridos em textos), para cada um dos dois grupos (crianças de escolas onde se enfatiza o uso de histórias e crianças de escolas onde tal procedimento não ocorre nos três tipos de conteúdo (conhecidos, desconhecidos e contrários).

 

 

 

Verifica-se que o número de respostas corretas alcançadas pelas crianças que freqüentam escolas onde o uso de histórias é enfatizado (G1) na 1a. fase é menor que o das crianças cujas escolas não enfatizam este uso (G2). As crianças do G2 obtiveram maior número de respostas corretas que as crianças do G1 nos silogismos envolvendo os três tipos de conteúdo, independentemente do fato de o silogismo ser apresentado isolado ou inserido em histórias. No entanto, estes resultados nas outras duas fases apresentam-se invertidos. Isto é, as crianças do G1 que começaram a 1a fase com escores inferiores às crianças do G2, na 2a.e 3a. fases obtiveram resultados superiores nos silogismos envolvendo todos os três tipos de conteúdo independente dos mesmos serem apresentados isolados ou inseridos em textos.

Estes dados foram tratados estatisticamente com uma análise de variância (Anova) envolvendo tipo de escola (2) X tipo de conteúdo (3) X sessão (2) X fases (3). As variáveis, conclusões coerentes e incoerentes dos problemas, por não terem apresentado diferenças significativas em uma análise prévia, foram excluídas da presente análise. A ANOVA produziu um efeito apenas marginalmente significante para tipo de escola (F(1,39) = 3.08, = 0.87). No entanto, houve uma interação entre tipo de escola X fases (F(2,78) = 14.57, < 0.001). Outros efeitos significativos apresentados devem-se à variável fases (F(2,78) = 38.93, < 0.001) e ao tipo de conteúdo (F(2,78) = 408.57, < 0.001).

Uma análise posterior da interação entre tipo de escola e fases demonstrou que, na 1ª fase, o G2 obteve significativamente maior número de acertos que o G1 (F(1,58) = 16.93, < 0.0001). Na 2ª fase esta situação se inverteu e o G1 ofereceu significativamente maior número de respostas corretas que o G2 (F(1,52) = 23,50,< 0.0001). Já na 3ª fase, apesar das crianças do G1 terem oferecido maior número de respostas corretas que as crianças do G2, a diferença foi apenas marginalmente significativa (F(1,39) = 2,76, = 0.10).

As médias de respostas corretas nas três fases do G1 foram comparadas com o teste de Newman-Keuls. Esta análise mostra que tanto na fase 2 como na fase 3 houve um número significativamente maior de respostas corretas que na fase 1 (< 0.01), e que na Fase 3 o número de acertos foi significativamente maior que na fase 2 (< 0.01).

No grupo G2 a diferença de número de acertos entre as fases 1 e 2 não foi significativa. No entanto, na fase 3, um número significativamente maior de acertos foi oferecido em comparação com a fase 1 (< 0.01) e com a fase 2 (< 0.01).

As médias de respostas corretas das crianças do G1 nos três tipos de conteúdos também foram comparadas com o teste de Newman-Keuls (Bruning & Kintz, 1987). A análise mostra que houve significativamente mais acertos para os fatos desconhecidos que para os fatos contrários (< 0.01) e para os fatos conhecidos quando comparados aos fatos contrários (< 0.01). A diferença entre número de acertos oferecidos aos fatos conhecidos e aos fatos desconhecidos não foi significativa.

O mesmo ocorreu no G2. Houve significativamente mais acertos nos fatos desconhecidos quando comparados aos contrários (< 0.01) e mais acertos nos fatos conhecidos que nos fatos contrários (p < 0.01). O número de acertos oferecidos aos fatos conhecidos não diferiram significativamente daqueles oferecidos aos fatos desconhecidos.

Tipos de Justificativas

As justificativas foram julgadas por dois juizes independentes, obtendo-se 98.6% de acordo para os dados das três fases. Os julgamentos discrepantes foram apresentados a um terceiro juiz cuja avaliação foi dada como final.

Na Figura 1, encontram-se as médias das justificativas teóricas, empíricas e arbitrárias oferecidas pelas crianças dos dois grupos, na 1a. fase, nos silogismos isolados e inseridos com conclusões coerentes e incoerentes. Pode-se verificar que as crianças do G2 ofereceram mais justificativas teóricas e menos empíricas e arbitrárias que as crianças do G1. Na 2ª fase (Figura 2) e na 3ª fase (Figura 3) esta tendência se inverteu e as crianças do G1 passaram a oferecer mais justificativas teóricas e menos justificativas empíricas e arbitrárias.

 

 

 

 

 

Discussão

As crianças que freqüentavam escolas onde o uso de histórias é enfatizado (G1) começaram este estudo (meio do 1º semestre do ano letivo) com desempenho inferior aos das crianças que estavam em escolas onde este uso não é sistemático (G2). No entanto, na segunda fase do estudo, no fim do mesmo ano letivo, a situação inverteu-se: as crianças das escolas que usam sistematicamente a discussão de histórias apresentaram performance superior àquelas do outro tipo de escola. Esta situação manteve-se, embora menos acentuada, um ano depois (fim do ano letivo da 1ª série do 1º grau).

Estes resultados ocorreram tanto nos silogismos apresentados isoladamente, quanto naqueles inseridos em histórias, independentemente do conteúdo envolvido e das conclusões serem coerentes ou incoerentes com as premissas.

A semelhança de desempenho das crianças nos dois tipos de conclusões (coerentes e incoerentes) replica o estudo de Pratt e cols. (no prelo) no qual mesmo crianças de 5 anos de idade denotaram boa performance tanto em histórias consistentes como naquelas inconsistentes.

Quanto aos conteúdos, ambos os grupos apresentaram melhor desempenho quando os silogismos envolviam fatos conhecidos, diminuindo um pouco o número de acertos nos fatos desconhecidos e alcançando baixos resultados nos fatos contrários. Isto ocorre independentemente dos silogismos serem apresentados isolados ou inseridos em textos. Como no estudo de Pratt e cols. (no prelo), diferenças marcantes apareceram quando os silogismos continham fatos contrários à experiência das crianças, independentemente de serem apresentados isolados ou inseridos em histórias. Isto nos faz voltar aos trabalhos de Dias e Harris (1988a, 1988b, 1989, 1990) onde eles enfatizam a necessidade das crianças suprimirem o "viés empírico" e assim serem capazes de raciocinar corretamente com premissas cujos conteúdos sejam contrários às suas experiências do dia-a-dia. Essa supressão do viés empírico, i.e., não levar em consideração os fatos que ocorrerem na vida diária, requer, segundo os autores, a construção temporária de um mundo imaginário separado da realidade diária.

Nota-se ainda que a capacidade das crianças de ambos os grupos para resolver silogismos apresentados isolados nas três fases é semelhante à capacidade de utilizar o raciocínio silogístico para tirar conclusões a partir de premissas contidas em histórias. Assim, nossa suposição de que seriam necessários mais alguns anos para as crianças serem capazes de fazer inferências lógicas a partir de premissas contidas em histórias não foi aqui verificada.

Vale salientar que o desempenho das crianças do G1 evoluíu significativamente em cada uma das fases. Já as crianças do G2 não apresentam melhora significativa de desempenho da primeira para a segunda fase, só ocorrendo uma evolução substancial desta fase para a última etapa do estudo.

Este melhor desempenho, principalmente nos conteúdos incoerentes com a experiência diária, a partir da 2ª fase, apresentado pelas crianças de escolas onde o uso de histórias é enfatizado, pode ter sido proporcionado pela maior familiaridade que elas adquiriram com o mundo de faz-de-conta que as histórias envolvem. Nota-se que este tipo de histórias, histórias de fantasia, são contadas às crianças em um contexto especial de leitura de livro sobre coisas que acontecem no "era uma vez". Isto informa a criança que o que está sendo dito é parte de um mundo de faz-de-conta e isto, como foi verificado nos trabalhos de Dias e Harris (1988a, 1988b, 1989, 1990), habilita a criança a conceber premissas que se desviam da realidade conhecida e a considerar as conseqüências de tais premissas, o que é crucial para o raciocínio lógico e para a consciência pragmática.

Assim, a consciência pragmática aqui estudada com o objetivo de verificar um melhor desempenho das crianças em monitorar e refletir sobre proposições, principalmente com aquelas envolvendo inconsistências, foram aqui detectadas. Novamente, vale ressaltar, que o melhor desempenho aparece, mais facilmente, em crianças que freqüentam escolas nas quais o "contar histórias" constitui tarefa rotineira.

 

Referências

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1 Apoio do INEP

2 Endereço: Pós-Graduação em Psicologia da UFPE, Área: Psicologia Cognitiva. Av. Acad. Hélio Ramos, S/N, CFCH, 8o. andar, Cidade Universitária, Recife, PE. 50.670-901, Mdias@NPD.UFPE.BR, Fone: (081) 271.8272, FAX: (081) 271.1843.

3 Existem 4 formas de silogismos condicionais: dois válidos: Modus Ponens (se p então q, p, portanto q) eModus Tollens (se p então q, não q, portanto não p), e dois inválidos: Afirmação do Consequente (se p então q, q, portanto ?) e Negação do Antecedente (se p então q, não p, portanto ?). Desses dois últimos não se pode concluir com certeza.


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722000000100008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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