Artigos Científicos

Aspectos genéticos e sociais da sexualidade em pessoas com síndrome de Down

Lília M.A. Moreira; Fábio A.F. Gusmão

24 de julho de 2007

Rev. Bras. Psiquiatr. v.24 n.2  São Paulo jun. 2002

Aspectos genéticos e sociais da sexualidade em pessoas com síndrome de Down

Genetic and social aspects of Down syndrome subjects' sexuality

 

Lília MA Moreira e Fábio AF Gusmão

Laboratório de Genética Humana e Citogenética, Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador, BA, Brasil


RESUMO
As representações que pais e educadores fazem da sexualidade de pessoas com a síndrome de Down (SD) referem, muitas vezes, a atitudes agressivas ou, então, condutas assexuadas, exclusivamente fundamentadas na afetividade. Este trabalho faz uma análise da literatura referente à sexualidade e à reprodução em portadores dessa síndrome e avalia as possibilidades de recorrência do distúrbio a partir da segregação cromossômica em portadores de diferentes tipos de trissomia 21. Diversas publicações mostram a existência de diferentes níveis de maturidade e de adaptação social na SD que, associados a fatores como excesso de cuidados parentais, falta de amigos e preconceito social, constituem barreiras para a vivência plena da sexualidade. Os relatos de procriação em portadores da síndrome de Down revelam progênie normal ou com a síndrome, com maior prevalência de filhos normais. A análise de segregação cromossômica mostra probabilidade de 50% para conceptos com trissomia 21 e de 25% de filhos normais em casais com SD, caso os mesmos sejam férteis. O percentual restante corresponde a conceptos certamente inviáveis, com tetrassomia 21. Quando apenas um dos parceiros é portador da SD, a probabilidade de filhos normais ou com a síndrome passa para 50%. Nos casos de SD com trissomia por rearranjo estrutural como nas translocações 14/21 ou 21/21, a probabilidade de filhos normais é também de 50%. Portadores de mosaicismo podem apresentar riscos inferiores a esse percentual a depender da freqüência de células trissômicas no tecido gonadal. O direito à sexualidade e, por outro lado, o alto risco genético de recorrência da síndrome evidenciam não apenas a necessidade de se discutir a questão, como também a importância do apoio emocional e da educação sexual para a pessoa com SD.

Descritores
Síndrome de Down (SD). Comportamento. Sexualidade. Reprodução.

 

ABSTRACT
Regarding sexuality of Down Syndrome (DS) subjects, parents and educators tend to refer to their non-sexual behavior, and to consider their relationships as based on either affection or aggressive attitudes. This paper reviews important studies about sexuality and reproduction of DS and perform an analysis of the risks involved in the procreation of DS subjects. A possible explanation for the absence of sexuality in DS lies on the fact that different levels of maturity and social adjustment are disregarded. Factors such as parental overprotection, lack of friendships, and social prejudice are barriers for these people to develop their sexualities. The risks of having DS children when both partners are DS and when only one of them is DS are presented here. In the first situation, if both partners are fertile, the probability is 50% of having a 21-trisomy conceptus, and 25% of having normal offspring. The percentage remaining corresponds to not viable 21 tetrasomy zygotes. The probability of a couple having normal children can be increased, however, to 50% when only one of the partners is DS. In cases of DS with 14/21 or 21/21 translocations, the probability of having normal children is also 50%. However, this probability can be reduced in DS with mosaicism. The right of one's person to live his/her sexuality, on one hand, and the high genetic risk of DS recurrence, on the other, show the need for further discussing this issue and providing emotional support as well as sexual education for DS subjects.

Keywords
Down syndrome (DS). Behavior. Sexuality. Reproduction.

 

INTRODUÇÃO

A síndrome de Down (SD) é um distúrbio genético, descrito inicialmente pelo médico inglês John Langdon Down em 1866.1 É condicionada pela presença de um cromossomo 21 adicional nas células de seu portador2 e ocorre como trissomia livre em cerca de 95% dos casos. Nesse distúrbio podem ser também observadas outras formas de trissomia que podem ocorrer em mosaicismo, com células normais, e outras com trissomia 21 em 1% a 2% dos portadores da síndrome, além de translocações geralmente entre os cromossomos 14 e 21 em cerca de 3% a 4% dos casos.3 Na maioria das vezes, o distúrbio cromossômico deve-se à mutação de novo, sem chances maiores de recorrência na família.

A freqüência da síndrome de Down registrada na América do Sul é de um caso em cerca de 700 nascimentos (1,4/1000), e a possibilidade de sua ocorrência aumenta com a idade materna: aos 20 anos é de 0,07%, passando para 0,3% aos 35, 1% aos 40 e quase 3% após os 45 anos.4 Como explicação para esse fenômeno, tem sido considerado que a formação dos óvulos, iniciada no período fetal, e o tempo necessário para completar o processo deixariam as células germinativas femininas (ovócitos) expostas a danos ambientais que poderiam levar a erros durante a divisão meiótica.

O fato de nascerem crianças com trissomia 21 de mães jovens, assim como a comprovação de erros na divisão celular de origem paterna, mostram que a idade avançada não é o único fator interveniente. Não obstante, Castilla et al4 ressaltam a importância da idade materna avançada na origem da SD e observam que, se as gravidezes fossem antecipadas em alguns anos, 30% dos casos da síndrome seriam evitados sem a utilização de nenhuma tecnologia complexa e dispendiosa.

A SD é caracterizada por um grau variável de atraso no desenvolvimento mental e motor e está associada a sinais como hipotonia muscular (90,9%), prega palmar transversa única (59,0%), prega única no quinto dedo (18,1%), sulco entre o halux e o segundo artelho (77,2%), excesso de pele no pescoço (82%), fenda palpebral oblíqua (100%), face achatada (86,3%), de acordo com estudo de revisão.5 Os valores em parênteses referem-se à freqüência dos sinais entre os portadores da síndrome. Para a manifestação dos sinais clínicos críticos na SD, é necessário que ocorra a trissomia da banda cromossômica 21q22, correspondente a 1/3 do cromossomo 21.6-8

Estudos recentes com modelos animais realizados por Smith et al9 revelam que material gênico adicional na região 21q22.2 implica déficit neurológico. Moreira et al10 observam que, entre os produtos gênicos conhecidos nessa região cromossômica, a APP (proteína precursora amilóide) foi decisivamente relacionada à SD, estando associada ao déficit na adesão celular, na neurotoxidade e no crescimento celular, com implicações na formação do sistema nervoso central. O seqüenciamento gênico do cromossomo 2111 revelou pouco conteúdo informacional, com apenas 225 genes (127 conhecidos, 98 preditivos e 19 pseudogenes), o que pode explicar a maior sobrevida e adaptação de portadores.

Historicamente, indivíduos com SD têm sido considerados portadores de características comportamentais peculiares e de deficiência mental. Langdon Down12 atribui a esses indivíduos poder de imitação, obstinação, amabilidade e sociabilidade. Fraser & Mitchell13 descrevem características como bom humor e temperamento agradável. Collacott et al14 confirmam o estereótipo comportamental, ressaltando também a escassez de distúrbios de adaptação nos portadores dessa síndrome. Estes autores referem que fatores de natureza social, psicológica e biológica podem estar relacionados ao fenótipo comportamental, a exemplo da redução do nível de serotonina, associada a anomalias estruturais do cérebro.

Não obstante os trabalhos referidos, outros pesquisadores não encontraram diferenças de comportamento em crianças com SD quando comparadas a outras com deficiência mental ou a controles normais da mesma faixa etária.15,16 Fidler & Hodapp17 acreditam que os estereótipos comportamentais estejam relacionados à aparência craniofacial infantil, observando que portadores da síndrome que apresentam a "face de bebê" mostram mais freqüentemente comportamento imaturo.

Quanto ao retardo mental, embora tenha sido considerado característica típica da síndrome, nem sempre é observado. Canning & Pueschel18 referem que o desenvolvimento intelectual na SD foi subestimado no passado e afirmam que estudos contemporâneos, incluindo suas próprias investigações, mostram um desempenho na faixa de retardo mental leve a moderado, com poucos casos de deficiência mental severa. Moreira et al,10 em artigo de revisão, observam variação no grau de retardo mental em portadores da SD, com exemplos de pessoas com desenvolvimento cognitivo limítrofe ou mesmo normal. Moreira et al,19 em outro trabalho, também relatam caso de jovem com trissomia 21 em mosaico e baixo percentual de células aneuplóides, com desenvolvimento cognitivo acima da média, que teve acesso ao ensino superior.

Além da existência de diferenças, as possibilidades no desenvolvimento de pessoas com SD têm sido implementadas com o atendimento a suas necessidades especiais por meio do tratamento precoce, que inclui realização de estimulação fisioterapêutica, atenção à fala e a problemas específicos de saúde que possam estar presentes. Essas medidas vêm proporcionando avanços no desenvolvimento físico e mental, aumentando a expectativa de vida e ocasionando oportunidades de interações sociais na comunidade.

O presente artigo aborda a questão do comportamento sexual e da reprodução em portadores da SD, a partir da revisão de artigos encontrados na literatura, e avalia também as chances de recorrência do distúrbio na prole, pela análise da segregação cromossômica em diferentes tipos de trissomia 21. A revisão da literatura foi realizada por meio de pesquisa em bases de dados Medline e Lilacs, utilizando como descritores de assunto os termos: síndrome de Down, comportamento sexual, reprodução. Foram também consultados livros-texto sobre SD e anais de congressos sobre o tema.

Comportamento e educação sexual

Rosana Glat20 afirma que "a sexualidade da pessoa com deficiência mental (a não ser nos casos neurologicamente mais prejudicados) não é qualitativamente diferente das demais" e refere que sempre que essa colocação é feita em público leva inevitavelmente a expressões de espanto, descrença e freqüentemente à franca oposição.

Giami & D' Allones21 pesquisaram as representações que pais e educadores faziam da sexualidade de jovens com deficiência mental e referiram que os educadores entrevistados viam a sexualidade do deficiente mental como "selvagem" (práticas masturbatórias, voyerismo, exibicionismo, homossexualidade e condutas agressivas, sem afetividade) ou então incompletas, não finalizadas. Os pais, por sua vez, consideravam seus filhos "sexualmente infantis", com atitudes assexuadas ou essencialmente fundadas na afetividade.

Pueschel & Scola22 investigaram as percepções parentais das interações sociais, incluindo o interesse no sexo oposto, a função sexual e a educação sexual de jovens com SD. Concluíram que mais da metade do grupo estudado mostrava interesse no sexo oposto; poucos indivíduos tiveram educação sexual, e, entre os jovens, a masturbação era praticada por 40% dos homens e por 22% das mulheres. Os autores também observaram que a metade dos pais de jovens com SD acreditava que os filhos deveriam ser esterilizados ou ter alguma forma de controle de natalidade, caso tivessem possibilidade de reprodução.

Shapperdson23 analisou duas coortes de jovens com SD nascidos nas décadas de 60 e 70 e refere atitudes mais liberais nos responsáveis pelos indivíduos mais jovens. Observa, entretanto, que os sujeitos estudados não recebiam educação sexual nem tinham liberdade para experimentar relacionamentos sexuais, o que evidencia posturas repressoras. Os responsáveis não eram favoráveis à reprodução, e a metade deles considerava a esterilização a medida mais adequada.

No Brasil, estudo realizado pela Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down,24 com 376 pais de pessoas com SD, mostrou que 70% dos indivíduos pesquisados acreditavam que a sexualidade de seus filhos era semelhante à de outras pessoas. Quando questionados sobre as chances de casamento, 27,3% consideravam viável, e 34%, inviável. A maioria (38,6%) opinava que isso dependia de cada caso, considerando aspectos como independência e comprometimento mental. Quanto à procriação, para 58% dos pais entrevistados, tratava-se de uma possibilidade inviável.

Não obstante a questão da sexualidade ainda ser considerada com reservas e proibitiva por muitas famílias, ocorrem casos de namoros e até de casamentos entre portadores da síndrome de Down. No II Congresso Internacional da Síndrome de Down, em 1993, na cidade de Orlando, Flórida (EUA), Roy I. Brown25 discutiu a questão da vida social e do casamento, apresentando entrevistas com pessoas com a síndrome, na faixa etária de 30 a 40 anos. Nos casos apresentados, o parceiro não apresentava a mesma síndrome, mas alguma forma de handicap, por exemplo, paralisia cerebral. A maioria dos casamentos era feliz, alguns até de longa duração.

Elkins et al26 relatam história de casal com SD e descrevem o relacionamento como sendo bem-sucedido em termos da privacidade e da autonomia do casal. Nos casos apresentados por Brown,25 os casais tinham vida independente, com emprego ou recebendo pensão do governo, o que pode ter facilitado a manutenção dos vínculos. No Brasil, embora sendo comuns casos de namoros, não há conhecimento de união entre pessoas com a síndrome.

Entre as pessoas com SD, verificam-se diferentes níveis de maturidade e adequação. Algumas apresentam retardamento mental leve, sendo capazes de lidar com seus impulsos sexuais e relacionamentos como a maioria das pessoas. Em outro extremo estão aquelas que, muitas vezes por sua história de vida, com escassez de tratamentos e estímulos sociais, mais do que pela presença da trissomia do cromossomo 21, são impulsivas, com dificuldades de lidar com a sexualidade, não diferenciando o comportamento público do particular em atividades como masturbação, com dificuldades na comunicação e na compreensão das interações sociais que fazem parte das relações interpessoais. Torna-se compreensível, nesses casos, a atitude de algumas famílias que, ao mesmo tempo que impedem o desenvolvimento emocional do afetado, sentem-se ameaçadas pelas possibilidades de manifestação de suas pulsões sexuais.

A sexualidade está submetida a regras sociais e deve ser orientada de acordo com as normas da sociedade. A educação sexual deve ser considerada parte do processo de educação global da criança e do adolescente com SD, como para qualquer pessoa, com metodologia adequada à sua capacidade cognitiva e à faixa etária. Pessoas com SD, como quaisquer outras, requerem o desenvolvimento de aspectos como auto-estima, responsabilidades e valores morais, para se tornarem seres sexualmente saudáveis.

A capacidade de manifestar e sentir amor constitui a essência básica da sexualidade. Demonstrações de ternura, simpatia e atração exprimem amor e afeto e revelam a natureza do indivíduo como ser sexuado. Considerando as limitações que o portador da SD possa apresentar, os pais podem contribuir para a educação sexual transmitindo informações importantes, avaliando problemas potenciais e possíveis soluções ou caminhos, preparando seus filhos para serem indivíduos sexuados.

Assim, a falta de amigos e os preconceitos constituem barreiras sociais que interferem e, muitas vezes, impedem a vivência da sexualidade por parte das pessoas com SD. Não obstante o desenvolvimento de programas educacionais incluindo pessoas com deficiência, como os portadores da SD, verifica-se que esse processo não resulta necessariamente em integração social. De acordo com diversos estudos, Glat26 observa que, mesmo estudando em classes regulares, a maioria das crianças e dos jovens com deficiências continua segregada socialmente em suas comunidades, e, muitas vezes, seus relacionamentos pessoais são limitados à família, aos profissionais e a outras pessoas portadoras da mesma deficiência.

Desenvolvimento e reprodução

No desenvolvimento da pessoa com síndrome de Down, a puberdade e a maturação sexual ocorrem de forma comparável às de pessoas da população geral, em termos de idade e regularidade das menstruações, como revelado no estudo de Goldstein27 realizado com 15 adolescentes, probandas portadoras da SD e controles sem essa síndrome. O trabalho refere idade média da menarca em 13,6 anos para as probandas e em 13,5 para controles, duração de sangramento de 5,5 dias nas probandas e de 5,4 no grupo-controle e duração média do ciclo de 28,3 dias para as probandas em relação ao período de 28,6 dias para os controles. Os problemas ginecológicos mais comuns nas mulheres com SD são os cuidados na higiene menstrual e os sintomas pré-menstruais.28

Quanto à capacidade reprodutiva, Hojager et al29 referem número reduzido de folículos nos ovários. Dados da literatura sobre a reprodução de mulheres com SD sem mosaicismo30 mostram 30 gestações, incluindo um caso de gravidez gemelar em 26 mulheres SD, resultando em dez crianças com a mesma síndrome, 18 bebês sem o distúrbio e três abortos espontâneos. Contando a gravidez gemelar como uma, Bovicelli et al30 apresentam a proporção de descendentes afetados ou não pela SD na razão de 10:17. Embora essa proporção indique uma provável vantagem seletiva para os gametas normais, euplóides, os autores observam que, entre os filhos sem SD, seis apresentaram malformações congênitas inespecíficas e retardo mental, o que foi associado à alta freqüência de incestos, com conseqüente aumento da carga genética, ou à contribuição do parceiro, eventual portador de outro distúrbio.

A fertilidade, geralmente, é mais reduzida nos homens do que nas mulheres com SD, apesar do desenvolvimento normal das características sexuais secundárias. Estudos em tecidos testiculares realizados por Johannisson et al31 mostraram diminuição na capacidade de formar espermatozóides funcionais e comportamento anômalo do cromossomo 21 extra na meiose, divisão celular que leva à formação dos gametas. De acordo com os referidos autores, a ausência do cromossomo 21 extra na maioria das células da prófase meiótica, no estágio de paquíteno e seu reaparecimento em estágios posteriores, poderia ser explicada pela associação do 21 extra com segmentos não-pareados no complexo dos cromossomos sexuais XY, levando à interferência no processo de inativação do X, o que em sistemas animais tem sido relacionado a distúrbios na espermatogênese e à esterilidade de machos híbridos.32

Puerschel et al33 estudaram o desenvolvimento sexual de rapazes com SD e verificaram que o desenvolvimento de características secundárias, tamanho do pênis, circunferência e volume dos testículos, assim como a taxa hormonal (LH, FSH e níveis de testosterona), eram semelhantes aos verificados durante a fase de maturação sexual em jovens sem a síndrome. Os autores observam que questões sobre função sexual, libido, produção de espermatozóides e fertilidade ainda não estavam esclarecidas.

Há, entretanto, relatos sobre homens com síndrome de Down que procriaram. Em 1989 foi publicado o primeiro caso bem documentado de reprodução masculina. Tratava-se de rapaz com 29 anos, trissomia 21 sem mosaicismo e características clássicas da síndrome, que vivia em residência comunitária com três outros adultos, também portadores de deficiência mental, entre os quais uma jovem de 24 anos, sem diagnóstico clínico específico, com quem formou um casal. Embora a jovem normalmente fizesse uso de contraceptivos orais, no período em que interrompeu o medicamento, ocorreu a gravidez. Após aconselhamento, o casal optou por realizar o diagnóstico pré-natal para a detecção de eventual anomalia cromossômica na criança. Entretanto, depois desse procedimento, ocorreu sangramento que terminou com o aborto espontâneo do feto, caracterizado como normal, sem anomalias externas nem viscerais.34 Dois anos depois, o mesmo casal teve um filho sem alterações cromossômicas.35 Posteriormente foi relatado outro caso de reprodução de homem com a síndrome, resultando em menina normal.36

Tendo em vista o aconselhamento genético, as Figuras 1, 2 e 3 apresentam as possibilidades de separação dos cromossomos 21 na formação de gametas (óvulos ou espermatozóides) e as combinações possíveis desses cromossomos, dando origem a filhos portadores ou não da trissomia 21. Como pode ser observado, quando o casal é formado por pessoa com a trissomia 21 livre e outra sem o distúrbio, há 50% de chances de filhos sem trissomia 21. Quando ambos apresentam a síndrome e são férteis, a possibilidade de progênie normal é reduzida para 25%. Nesse caso, há um aumento do risco de abortos, pela produção de conceptos com tetrassomia 21, condição incompatível com a vida.

 

 

 

 

 

 

Em ocorrências mais raras de SD, aquelas por translocação cromossômicas 14/21 e 21/21, a probabilidade de filhos normais é de 50% em casamentos com pessoas sem a síndrome. Na primeira dessas translocações, pode haver aumento de abortos em decorrência de conceptos com combinações cromossômicas geralmente inviáveis. No caso de SD em mosaico, as chances de progênie afetada pela síndrome são ainda mais baixas, a depender da proporção de células com trissomia no tecido gonadal.

Bovicelli et al30 também referem que, do ponto de vista genético, mulheres com trissomia 21 podem produzir gametas euplóides, 23,X e aneuplóides 24,X+21, resultando em metade da descendência normal e metade trissômica. Entretanto, a partir dos casos descritos por esses autores, a proporção de descendência com SD é de 30%, havendo, portanto, um risco empírico mais baixo de recorrência do distúrbio. A maior chance de procriação em mulheres do que em homens SD pode estar relacionada não apenas a eventuais disfunções sexuais mais freqüentes no sexo masculino, mas também a diferenças no desenvolvimento emocional e no comportamento sexual.

Assim, não obstante o crescente movimento de inclusão social da pessoa com SD, a questão da reprodução é ainda considerada com reservas, não apenas pelos riscos genéticos relativamente altos, como também pelas dificuldades de manutenção do relacionamento conjugal e da independência da família. Casais que moram com seus pais enfrentam relações complexas com a vinda do filho, que se insere em um papel particular no relacionamento do casal, que geralmente não desfruta plena individualidade e independência. Nesses casos, o ideal é que as situações sejam consideradas individualmente e que a decisão sobre a procriação seja compartilhada pelo casal e por sua família. Atenção especial deve ser dada aos métodos de controle de natalidade para evitar a concepção e as doenças sexualmente transmissíveis, uma vez que não é raro a atividade sexual sem qualquer tipo de proteção em adolescentes e jovens de forma geral.

Atualmente muitos métodos contraceptivos, com níveis diferentes de eficácia, estão disponíveis, como os anticoncepcionais injetáveis, os implantes e os preservativos. A escolha do método contraceptivo deve ser feita de acordo com a possibilidade de serem utilizados com eficiência.37 Schwarb38 observa que mulheres com SD podem ter dificuldades em utilizar os métodos de barreira, que requerem planejamento e motivação para o uso adequado, e sugere métodos injetáveis como o Depo-Provera® a cada três meses ou os implantes subcutâneos de Norplant®, que dependem de procedimentos cirúrgicos mínimos e podem funcionar efetivamente por mais de cinco anos.

Considerações finais

O presente estudo foi desenvolvido tendo em vista o momento atual de mudanças de paradigmas e a realidade da inclusão de pessoas com SD na escola e na sociedade, com novas oportunidades de convivência social. As questões sexuais foram consideradas neste trabalho não apenas quanto às perspectivas biológicas, mas também quanto aos aspectos afetivo, social, cultural e ético, tendo em vista o respeito aos direitos doa pessoa com a síndrome, de sua família e da sociedade como um todo.

O silêncio e a repressão são formas negativas de lidar com a sexualidade. Em contrapartida, a educação sexual, inserida no contexto da educação global do indivíduo, estimula a evolução do desenvolvimento psicossexual, possibilitando a aceitação de regras sociais e a definição de valores sexuais que certamente contribuem para inclusão social da pessoa com SD.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à geneticista Lucy Magalhães Freitas pela leitura do texto e pelas valiosas sugestões; à bibliotecária Maria Solange Alves de Souza Paula pela dedicada cooperação na revisão bibliográfica, assim como à profa. Sônia Moura Costa pela tradução do resumo.

 

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Correspondência:
Lília Maria de Azevedo Moreira
Rua da Paz, 32, apt. 201, Graça
40150-140 Salvador, BA, Brasil
E-mail: lazevedo@ufba.br


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462002000200011&lng=pt&nrm=iso

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