Artigos Científicos

Adolescente com compulsão de assistir TV: relato de caso

Bruno José Barcellos Fontanella

27 de julho de 2007

Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul v.28 n.2  Porto Alegre maio/ago. 2006

Adolescente com compulsão de assistir TV: relato de caso

 

Bruno José Barcellos Fontanella

Psiquiatra, Doutor em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP. Professor adjunto, Departamento de Medicina, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP

Correspondência 


RESUMO

Relata-se o caso de uma adolescente de 19 anos com um quadro de ansiedade social e que, nos últimos 4 a 5 anos, despendeu diariamente de 8 a 14 horas assistindo televisão, chegando eventualmente a 20 h/d. Comentam-se: as percepções subjetivas da paciente sobre essa situação; o conjunto de sintomas que experimentou ao tentar, pela primeira vez, interromper o comportamento; o prognóstico a curto prazo apresentado após instituição de sertralina 200 mg/d, de psicoterapia analítica e de uma abordagem psicoterápica cognitiva durante as consultas psiquiátricas. Faz-se uma discussão sobre uma possível "síndrome de dependência de televisão" (diagnóstico não-reconhecido nas classificações nosográficas psiquiátricas) ou, talvez mais apropriadamente, um diagnóstico de "uso nocivo" de televisão.

Descritores: Televisão, comportamento compulsivo, transtornos de ansiedade, adolescente.


INTRODUÇÃO

Pesquisas brasileiras sugerem que o tempo médio que nossas crianças e adolescentes passam assistindo televisão (TV) pode ser maior que o tempo que passam na escola1,2.

Tendo menos capacidade de discriminação sobre questões éticas e sociais complexas, crianças e adolescentes são mais vulneráveis às variadas influências ambientais, como as da programação de televisão, sobre seus comportamentos, julgamentos e escolhas.

Programas televisivos podem influenciar positivamente o aprendizado educacional e o comportamento social de crianças e adolescentes3. Porém, as possibilidades no sentido contrário são as mais enfatizadas na literatura: as possíveis relações entre televisão e alguns danos à saúde, como sedentarismo, obesidade, comportamentos agressivos, diminuição de horas de sono, início precoce de uso de tabaco, iniciação sexual precoce e baixo rendimento escolar4-10. Além desses, começa a ser discutido o comportamento compulsivo quanto ao próprio ato de assistir televisão11.

Relata-se o caso clínico de uma adolescente que, nos 4 a 5 anos prévios à primeira consulta psiquiátrica, assistia diariamente de 8 a 14 horas de TV, chegando eventualmente a 20 h/d (muito acima da média aferida em estudos brasileiros1,2). Como será descrito, a paciente apresentava comportamentos intensamente egodistônicos, relacionados ao que ela mesma qualificava como excesso de tempo diante da TV.

 

RELATO DE CASO

Sexo feminino, 19 anos, branca, solteira, ensino médio completo. A queixa principal foi da mãe: "é irritada, difícil, muito dependente, brigamos muito". A paciente não apresentou queixas próprias num primeiro momento.

História da moléstia atual

O relato de ambas valorizou, inicialmente, o fato de que foi criada sem o pai e que a mãe sempre trabalhou no período noturno, desde o nascimento da paciente. Esta relatou sintomas compatíveis com uma síndrome de ansiedade: intensas angústias com o vestibular, medo de reprovação e insatisfação geral com sua vida (social, emocional e com seu corpo, pois tem acne e sobrepeso), medo de performances sociais, de falar em público, insegurança de não ser aceita pelos colegas. O quadro foi caracterizado, sobretudo, como fóbico social.

Iniciou psicoterapia analítica (com outro profissional) e psicofarmacoterapia com sertralina (inicialmente 100 mg/d, depois 200 mg/d, validada para tratamento da ansiedade social12). Nos meses seguintes, houve melhora subjetiva de sua qualidade de vida - sobretudo das interações familiares - e dos sintomas ansiosos sociais: "estou mais segura, mais tranqüila, menos ansiosa".

Os problemas associados à TV foram relatados somente 4 meses após o início do acompanhamento, revelando-se os mais chamativos do quadro clínico. A paciente escreveu, a pedido do autor, um relato autobiográfico sobre esse aspecto de seu quadro.

História da relação da paciente com a TV

Relatou um progressivo dispêndio de tempo diante da TV ao longo de sua vida, que dividiu espontaneamente nestas fases:

Dos 4 aos 6 anos: 3 h/d, "achava divertido ver desenhos";
Dos 6 aos 13 anos: "não me lembro dessa fase";
Dos 13 aos 15 anos: 4-5 h/d, "para me distrair";
Dos 15 aos 18 anos: 8-9 h/d, "distrai, tranqüiliza, preenche um vazio";
Atualmente: 12-14 h/d (máx. 20 h/d).

A sensação de tranqüilidade mencionada (entre os 15 e os 18 anos) mantinha-se no momento do relato; porém, agora, sente que a TV também "supre necessidades; tenho necessidade de assistir". Há 2 anos, sente essa vontade intensamente, geralmente de maneira contínua ("deixo de ler um livro que acho interessante; parece uma necessidade"), experimentando-a, por vezes, como comportamento compulsivo ("tentei dormir, estava com sono, mas não conseguia desligar a televisão; pensava: 'será que está passando algum filme legal?'"). Apesar da autocrítica, sente não controlar este comportamento: "percebo tudo aquilo que a TV prejudica, mesmo assim não deixo de ver". Mesmo assistindo a programas considerados interessantes, pensa: "'será que está passando algo mais interessante?' Aí eu mudo de canal".

"Assisto a dois programas simultaneamente. Troco para outro pior só por causa da ação, das cores, do movimento. Gosto de histórias, de enredos, assisto mesmo programas ruins."

Identificou prejuízos quanto à sua vida social, amizades, vida escolar, familiar e para a saúde:

"Com amigos que já tenho não prejudica, mas é difícil fazer outros amigos."

"Ano passado, desligava a televisão às 2 h e de manhã perdia a primeira aula; à tarde, dormia mais do que seria bom."

"Faço as refeições sempre na frente da televisão, menos o café da manhã. Não faço refeições com a mãe. Mesmo domingo, fico cansada, porque fui dormir tarde."

"Não consigo acordar para caminhar de manhã."

Relata reclamações de parentes, sobretudo da mãe, o que considera uma evidência de seu problema: "deixo de fazer o que minha mãe pediu para ver TV".

Nega problemas com o uso da Internet.

A partir desse seu relato, foram utilizadas, durante as consultas psiquiátricas, técnicas cognitivo-comportamentais, visando mudança desse comportamento de uso excessivo de TV: foi aconselhada a tentar diminuir o tempo destinado a essa atividade e orientada no sentido de buscar alternativas de lazer.

Um dia, compareceu à consulta referindo não assistir TV havia 8 dias. Seu relato é aqui transcrito, parecendo caracterizar quadro análogo a uma síndrome de abstinência:

"Fico irritada. Não tem um minuto sem pensar em televisão, nos filmes, novelas, personagens, enredos, jornais, nas cores. Alguns programas têm fundo azul, dá uma sensação de tranqüilidade, de respeitabilidade, de intelecto, meio que nobre. Fico lembrando de alguns seriados, mesmo os que não passam mais. Sonhei com televisão. Nestes dias, se tenho alguma coisa para fazer, deixo para a noite, para disfarçar o desejo de ver naqueles horários. Cheguei ultimamente a ficar 20 horas com a televisão ligada, só desliguei porque minha mãe chegou. Às vezes ligo o computador, talvez para ver a tela iluminada. Quando me deito, durmo mal, fico revirando. Desliguei a do meu quarto, guardei o controle num lugar difícil. Minha mãe sabe do meu problema, mas não tem idéia da gravidade. No começo [desses 8 dias sem assistir], foi muito difícil, quase não tinha controle, foi doloroso, muita vontade, demais. Tentava estudar, mas não conseguia me concentrar, e optava por uma leitura mais leve. Coloquei o livro de biologia perto da televisão, para me lembrar porque não estou mais assistindo.

 

DISCUSSÃO

"Dependência de televisão" não é um objeto de conhecimento clínico-científico suficientemente delimitado e não é diagnóstico psiquiátrico reconhecido nas atuais classificações nosográficas. Para evitar a banalização do uso do termo dependência, quando aplicado a atividades comuns da vida diária, talvez seja preferível denominar a situação como abuso ou uso nocivo de TV.

Entretanto, o caso relatado mostra um paralelismo com os sinais e sintomas de dependência de substâncias psicoativas, assim reconhecidos pela nosografia psiquiátrica atual13. Priorizava-se, por exemplo, o comportamento de assistir TV em detrimento da convivência familiar, de atividades de estudo e mesmo da saúde física. Adicionalmente, assistia por períodos de tempo maiores do que os intencionados, apresentava desejo persistente de estar diante da TV, esforçando-se para diminuir o tempo despendido, e reduzia o tempo destinado a outras atividades sociais e recreativas. Todos esses comportamentos são diretrizes da Classificação Internacional das Doenças (CID-10)13 para diagnóstico de dependência de substâncias e encontravam-se presentes nessa paciente.

Porém, a transposição de outros dois critérios, os mais específicos da síndrome de dependência, é menos imediata. Considerar, por exemplo, que a paciente apresenta tolerância a assistir TV é inadequado, por ser este de um conceito farmacológico. Salienta-se, porém, que ela relatou um fenômeno análogo: um aumento evidente de número de horas diante da TV ao longo dos anos. Quanto ao estado de abstinência, verifica-se a mesma impossibilidade teórica, por tratar-se de fenômeno neurofisiológico relacionado à interrupção ou diminuição do uso de uma substância. Porém, a paciente percebeu claramente o surgimento de sintomas com forte relação temporal com a suspensão do comportamento de assistir TV: falta de concentração, sensação de inquietação, sonhos relacionados à TV, insônia e fissura.

A paciente foi também diagnosticada como sociofóbica, quadro cuja relação com o abuso de TV não pode ser conclusivo em seu caso. Pode-se supor que as horas diante da TV, ao longo de seu desenvolvimento psicossocial, tenham dificultado o desenvolvimento espontâneo de habilidades sociais ou (no sentido oposto) que o abuso de TV seja conseqüência da evitação fóbica. O diagnóstico diferencial com uma síndrome depressiva foi inicialmente cogitado, tendo sido descartado porque a paciente não apresentava sintomas cruciais, como humor depressivo, fatigabilidade ou redução de interesses ou prazeres.

Quanto ao papel da sertralina no prognóstico de curto prazo apresentado pela paciente (em que pôde, pela primeira vez, estabelecer medidas de controle quanto ao uso), este igualmente não pode ser conclusivo. Tendo esse fármaco atividade anticompulsiva, é possível que tenha contribuído positivamente; porém, seus efeitos ansiolíticos inespecíficos podem também ter contribuído. Os possíveis efeitos positivos da psicoterapia analítica iniciada simultaneamente à farmacoterapia também devem ser cogitados.

Mesmo não havendo consenso sobre a propriedade de um diagnóstico de dependência de TV, é recomendável que pediatras e hebeatras sejam criteriosos ao avaliar a relação de crianças e adolescentes com esse hábito14, perguntando, por exemplo, sobre como esse comportamento ocorre, se os pais compartilham com os filhos esses momentos, se discutem o conteúdo dos programas, se o tempo diante da TV parece-lhes adequado e se não cogitam maior variedade de atividades de lazer - dessa maneira, os possíveis riscos de uma utilização acrítica dessa mídia podem ser minimizados.

 

REFERÊNCIAS

1. Silva RCR, Malina RM. Nível de atividade física em adolescentes do Município de Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica. 2000;16(4):1091-7.

2. Lopes AS, Pires-Neto, CS. Estilo de vida de crianças com diferentes características étnico-culturais do Estado de Santa Catarina, Brasil. Rev Bras Ativ Fis Saude. 2001;6(3):6-16.

3. Merchan-Hamann E. Grau de informação, atitudes e representações sobre o risco e a prevenção de AIDS em adolescentes pobres do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica. 1995;11(3):463-78.

4. Brook DW, Brook JS, Rosen Z, De La Rosa M, Montoya ID, Whiteman M. Early risk factors for violence in Colombian adolescents. Am J Psychiatry. 2003;160(8):1470-8.

5. Hancox RJ, Milne BJ, Poulton R. Association of television during childhood with poor educational achievement. Arch Pediatr Adolesc Med. 2005;159(7):614-8.

6. Gutschoven K, Van den Bulck J. Television viewing and age at smoking initiation: does a relationship exist between higher levels of television viewing and earlier onset of smoking? Nicotine Tob Res. 2005;7(3):381-5.

7. Collins RL, Elliott MN, Berry SH, Kanouse DE, Kunkel D, Hunter SB, et al. Watching sex on television predicts adolescent initiation of sexual behavior. Pediatrics. 2004;114(3):e280-9.

8. Singer MI, Miller DB, Guo S, Flannery DJ, Frierson T, Slovak K. Contributors to violent behavior among elementary and middle school children. Pediatrics. 1999;104(4 Pt 1):878-84.

9. Fonseca VM, Sichieri R, Veiga GV. Fatores associados à obesidade em adolescentes. Rev Saude Publica. 1998;32(6):541-9.

10. Van den Bulck J. Television viewing, computer game playing, and Internet use and self-reported time to bed and time out of bed in secondary-school children. Sleep. 2004;27(1):101-4.

11. Kubey R, Csikszentmihalyi M. Television addiction is no mere metaphor. Sci Am. 2002;286(2):74-80.

12. Davidson JR. Pharmacotherapy of social phobia. Acta Psychiatr Scand Suppl. 2003;(417):65-71.

13. Organização Mundial da Saúde (OMS). Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas; 1993.

14. Bar-on ME. The effects of television on child health: implications and recommendations. Arch Dis Child. 2000;83(4):289-92.

 

Correspondência:
Bruno José Barcellos Fontanella
Departamento de Medicina
Centro de Ciências Biológicas e da Saúde
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Rodovia Washington Luís, km 235
CEP 13565-905 - São Carlos, SP
E-mail: bruno.fontanella@uol.com.br


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-81082006000200014&lng=pt&nrm=iso

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