Artigos Científicos

Teste para Identificação de Sinais de Dislexia: processo de construção

Rauni Jandé Roama Alves; et al

11 de agosto de 2015

Estud. psicol. (Campinas) vol.32 no.3 Campinas jul./set. 2015

 

Teste para Identificação de Sinais de Dislexia: processo de construção

Identifying Signs of Dyslexia Test: The construction process

Rauni Jandé Roama ALVES 1  , Ricardo Franco de LIMA 2  , Cintia Alves SALGADO-AZONI 2  , Mariana Coelho CARVALHO 2  , Sylvia Maria CIASCA 2  

1Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências da Vida, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Av. John Boyd Dunlop, s/n., Prédio Administrativo, Jardim Ipaussurama, 13060-904, Campinas, SP, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: R.J.R. ALVES. E-mail: <rauniroama@gmail.com>

2Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas. Campinas, SP, Brasil

 

 

RESUMO

Este estudo objetivou apresentar os processos de construção de um teste de triagem para avaliar sinais de dislexia. O procedimento foi realizado em duas fases: (a) identificação de produções científicas e instrumentos nacionais e internacionais sobre a avaliação da dislexia e seleção das habilidades cognitivo-linguísticas mais frequentemente avaliadas; (b) construção da versão preliminar e análise por juízes especialistas. A partir dessas fases foi elaborado o Teste para Identificação de Sinais de Dislexia, destinado a crianças na faixa etária de 8 a 11 anos. O teste é composto pela avaliação de oito habilidades: leitura, escrita, atenção visual, cálculo, habilidades motoras, consciência fonológica, nomeação rápida e memória imediata. Estudos futuros são necessários a fim de que sejam verificadas evidências de validade e confiabilidade do instrumento.

Palavras-Chave: Avaliação psicológica; Dislexia; Neuropsicologia

A dislexia do desenvolvimento é um transtorno específico de aprendizagem, caracterizado por dificuldades na aquisição e desenvolvimento das habilidades de leitura. Acomete crianças com nível normal de inteligência, sem déficits sensoriais e com adequada instrução acadêmica (American Psychiatric Association [APA], 2002Lyon, S.E. Shaywitz, & Shaywitz, 2003Pestun, Ciasca, & Gon-çalves, 2002).

As diretrizes diagnósticas para a dislexia são: rendimento inferior em precisão, velocidade e compreensão leitora, medido por testes padronizados, em relação ao esperado para a idade cronológica e inteligência; leitura/escrita caracterizada por erros, principalmente de origem fonológica; além disso, pode ser observado desenvolvimento tardio da linguagem oral (APA, 2002Organização Mundial da Saúde, 2008).

Estudos demonstram que crianças com dis-lexia apresentam alterações em diferentes funções cognitivas, como atenção visual (Franceschini, Gori, Ruffino, Pedrolli, & Facoetti, 2012), processamento fonológico (Lima, Salgado, & Ciasca, 2008Swanson, Xinhua, & Jerman, 2009), habilidade motora (Nicolson & Fawcett, 2011) e funcionamento executivo (Lima, Azoni, & Ciasca, 2012Reiter, Tucha, & Lange, 2005).

Pesquisas nacionais e internacionais têm sido conduzidas a fim de avaliar habilidades cognitivas e linguísticas que possam estar comprometidas desde o início da escolarização e serem sinais indicativos de transtorno de aprendizagem (Capellini et al., 2009F.C. Capovilla & Capovilla, 2002A.G.S. Capovilla, GÃ1/4tschow, & Capovilla, 2004A.G.S. Capovilla, Smythe, Capovilla, & Everatt, 2001Carvalhais, 2010Nicolson & Fawcett, 2003).

Cox (2002) realizou estudo cujo objetivo foi a elaboração de um instrumento - Test of Dyslexia and Dysgraphia (TODD) -, que auxiliaria no diagnóstico da dislexia e da disgrafia. Foi composto por memória de símbolos, memória de palavras, habilidades fonológicas, processamento visual e nomeação rápida de símbolos. A autora verificou que crianças com dislexia ou disgráficas apresentavam prejuízos em todas as habilidades avaliadas quando comparadas a outras sem esses diagnósticos, tendo pior desempenho em habilidades fonológicas e de memória.

Outro instrumento também encontrado internacionalmente é o Dyslexia Early Screening Test (DEST-2), desenvolvido por Nicolson e Fawcett (2003). O DEST-2 proporciona um perfil baseado na avaliação de algumas competências, tais como: nomeação rápida, discriminação fonêmica, estabilidade postural, rima, dígitos, nomeação de dígitos, nomeação de letras, ordem de sons, cópia de formas, atenção, vocabulário, coordenação visomotora. É capaz de oferecer valor de "risco" para um possível transtorno de leitura. Segundo os autores, crianças com dislexia tendem comumente a apresentar desempenho abaixo do esperado em discriminação fonêmica, nomeação rápida, rima e coordenação visomotora.

No contexto nacional, Capovilla et al. (2001) realizaram estudo preliminar de adaptação do International Dyslexia Test (IDT) para o português brasileiro. O teste é composto por subtestes que avaliam leitura, escrita, habilidades matemáticas, consciência fonológica, processamento auditivo, discriminação fonológica, memória de curto prazo, memória sequencial auditiva, processamento visual, discriminação e percepção visual, memória de curto prazo visual, memória sequencial visual, velocidade de processamento, sequenciamento, habilidades motoras e raciocínio. Tal estudo mostrou que o IDT foi sensível na detecção de habilidades alteradas em crianças brasileiras com dificuldades em escrita, principalmente aquelas dificuldades relacionadas ao processamento fonológico (composto pelos subtestes leitura, escrita, consciência fonológica, processamento auditivo, sequenciamento e velocidade de processamento).

Capellini et al. (2009) elaboraram um protocolo para identificação precoce de problemas de leitura, composto por sete subtestes: conhecimento do alfabeto, consciência fonológica, memória de trabalho, velocidade de acesso à informação fonológica, atenção visual, leitura de palavras e não palavras e compreensão de frases a partir de figuras apresentadas. As autoras ressaltaram a importância da avaliação dessas habilidades no ensino fundamental, de modo que se possa identificar o escolar com risco para dificuldades na leitura e escrita. Afirmaram ainda que, apesar de existirem inúmeros estudos nacionais sobre a relação entre habilidades fonológicas e aquisição da leitura, são escassas as investigações sobre protocolos que possam identificar prejuízos em tais habilidades.

Dessa forma, o presente estudo objetivou apresentar os processos de construção de um instrumento de triagem para avaliar sinais de dislexia, denominado Teste para Identificação de Sinais de Dislexia (TISD). Ressalta-se que o instrumento foi proposto no intuito de favorecer o encaminhamento para uma avalição mais completa de crianças com risco para dislexia, não proporcionando por si só o diagnóstico do transtorno. Apresenta-se aqui o início do desenvolvimento desse teste, ressaltando-se que, para que seja considerado um instrumento válido e confiável, são ainda necessários inúmeros estudos.

MÉTODO

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Parecer nº 946/2011). A aplicação da pesquisa foi composta por duas fases, descritas a seguir (Figura 1).

 

Figura 1. Fases de construção do instrumento. Nota: TISD: Teste para Identificação de Sinais de Dislexia. 

 

Fase 1. Aspectos teóricos

Inicialmente, foi realizada revisão da literatura nacional e internacional especializada em neuropsicologia para identificar instrumentos de avaliação e estudos sobre habilidades cognitivo-linguísticas prejudicadas em crianças com dislexia. Foram selecionadas as habilidades mais frequentemente avaliadas pelos instrumentos e as habilidades prejudicadas mais frequentemente estudadas nesse transtorno. Em seguida, foram descritas as atividades utilizadas na avaliação de todas as habilidades selecionadas. Para isso, foi utilizado protocolo conforme Tabela 1. A partir dessa análise teórica, foram selecionadas as habilidades para compor o TISD.

 

Tabela 1 Modelo de tabela utilizada para levantamento das habilidades 

Título do artigo/livro/teste/tese
Tipo de produção:
Autor(es):
Ano de publicação:
Local de publicação:
Objetivo:
Faixa etária:
Habilidades avaliadas Descrição das tarefas utilizadas para levantamento das habilidades

 

Fase 2. Construção do instrumento

Por meio do auxílio teórico e técnico de es-pecialistas em neuropsicologia e fonoaudiologia, foram desenvolvidas atividades baseadas naquelas descritas na Fase 1, para cada uma das habilidades selecionadas. Foi então construída a versão preli-minar do TISD, sendo estabelecidas suas pontuações e suas análises qualitativas, bem como os materiais para sua aplicação e correção.

Em seguida, essa versão foi avaliada por quatro juízes especialistas, sendo um da psicologia, um da neuropsicologia e dois da fonoaudiologia. O objetivo da avaliação foi realizar julgamento acerca do conteúdo do teste, verificando se as habilidades selecionadas estariam envolvidas com a dislexia e se as tarefas elaboradas estariam adequadas para sua avaliação. Esse tipo de avaliação pode ser definido como um estudo de evidências de validade baseadas no conteúdo do teste, que objetiva verificar se os itens que compõem o instrumento se referem ou não ao construto avaliado (American Educational Research Association, American Psychological Association, & National Council on Measurement in Education, 1999).

Todos os juízes receberam uma tabela que continha a definição das oito habilidades cognitivo-linguísticas selecionadas, as atividades elaboradas para suas avaliações e um espaço para assinalar se cada uma delas seria pertinente ou não de ser inclusa e possíveis mudanças no modo como estavam sendo avaliadas. Tanto as habilidades como os itens que compunham suas avalições seriam modificados, aceitos ou excluídos, caso houvesse 75% de consentimento entre os juízes. Os materiais elabo-rados também foram avaliados pelos juízes, exigindo-se o mesmo índice de consentimento para a manutenção e/ou exclusão de algum deles.

RESULTADOS

O Teste para Identificação de Sinais de Dislexia foi um instrumento elaborado com o objetivo de avaliar sinais de indicativos para a dislexia, destinado a crianças na faixa etária entre 8 e 11 anos, mediante aplicação individual. Pode ser classificado como instrumento neuropsicológico breve, uma vez que fornece rastreio das habilidades cognitivo-linguísticas mais comumente avaliadas em indivíduos com risco para esse transtorno específico de aprendizagem.

Fase 1

A partir da revisão da literatura realizada na Fase 1, foram identificadas as seguintes produções: (a) "An interpretative model of early indicators of specific developmental dyslexia in preschool age: a comparative presentation of three studies in Greece" (Zakopoulou et al., 2011); (b) "Assessing college-level learning difficulties and 'at riskness' for learning disabilities and ADHD: development and validation of the learning difficulties assessment" (Kane, Walker, & Schmidt, 2011); (c) "Desenvolvimento de ferramentas pedagógicas para identificação de escolares de risco para a dislexia" (Andrade, Prado, & Capellini, 2011); (d) "Learning disabilities checklist" (National Center for Learning Disabilities, 2007); (e) "Protocolo de identificação precoce dos problemas de leitura: estudo preliminar com escolares de 1º ano escolar" (Capellini et al., 2009); (f) "Learning Disability Evaluation Scale: Renormed second edition (LDES-R2)" (McCarney & Bauer, 2007); (g) "Funções neuropsicológicas em crianças com dificuldades de leitura e escrita" (Salles & Parente, 2006); (h) "DEST-2" (Nicolson & Fawcett, 2003); (i) "An evaluation of the psychometric properties of the test of dyslexia e dysgraphia" (Cox, 2002); (j) "Adaptação para o português brasileiro do IDT" (Capovilla et al., 2001); (k) "Teste exploratório de dislexia específica" (Condemarin & Blomquist, 1989).

As habilidades cognitivo-linguísticas mais frequentemente avaliadas em todos os testes e produções científicas pesquisadas foram oito - leitura, escrita, atenção visual, cálculo, habilidades motoras, consciência fonológica, nomeação rápida e memória imediata -, sendo selecionadas para compor o TISD.

Fase 2

Com o auxílio de um neuropsicólogo e de uma fonoaudióloga, foi construída a versão preliminar TISD, contendo uma atividade para cada uma das oito habilidades selecionadas. O instrumento foi organizado em quatro materiais: "Caderno de instruções de aplicação e pontuação", "Folha de resposta", "Caderno de aplicação" e "Caderno de estímulos".

Em seguida, foi obtida concordância para manutenção dessas oito habilidades/construtos entre os quatro juízes especialistas. Com base nas sugestões apresentadas, foram realizadas modificações apenas na forma de avaliação das palavras e pseudopalavras das tarefas de leitura e escrita. Como haviam sido adotadas muitas palavras polissilábicas, foi acatada a sugestão dos juízes para inclusão de palavras no máximo trissilábicas, por se tratar de um instrumento de triagem. Por unanimidade, os juízes optaram pela manutenção dos quatro materiais.

No Tabela 2 podem ser observados os subtestes e as respectivas atividades que foram construídas para composição do TISD. Podem ser observadas também as descrições, forma de administração pelo avaliador (visual, oral), forma de apresentação de respostas pela criança (oral, motora), necessidade de registro de tempo e total de pontos que podem ser obtidos. O tempo médio estimado para aplicação individual do TISD é de 30-40 minutos.

 

Tabela 2 Denominações e descrições dos subtestes que compõem o Teste para Identificação de Sinais de Dislexia 

Subtestes Descrição dos subtestes Pontuação
1. Leitura
1.1 Letras
1.2 Palavras
1.3 Pseudopalavras
Reconhecimento de 21 letras do alfabeto apresentadas de forma aleatória; leitura de
nove palavras e de nove pseudopalavras.
Aplicação: visual. Resposta: oral.
Total = 39
2. Escrita
2.1 Letras
2.2 Palavras
2.3 Pseudopalavras
Ditado de letras do alfabeto apresentadas de forma aleatória; ditado de nove palavras e de nove pseudopalavras.
Aplicação: oral. Resposta: motora.
Total = 39
3. Atenção visual Conjunto de 195 letras distribuídas aleatoriamente nas quais a criança devia procurar uma em específico, no caso a "p".
Aplicação: visual; registro de tempo (tempo limite 60 segundos). Resposta: motora.
Total = 195
4. Cálculo Quatro problemas a serem resolvidos mentalmente, sendo cada um correspondente a uma operação matemática.
Aplicação: oral. Resposta: oral.
Total = 4
5. Habilidades motoras Cópia de uma figura formada por linhas e quatro figuras geométricas (círculo, triângulo, quadrado e retângulo).
Aplicação: visual. Resposta: motora.
Total = 10
6. Consciência fonológica
6.1 Rima
6.2 Produção de rima
Duas tarefas: uma de identificação de rima (cujo objetivo era identificar quais palavras rimavam entre si); e outra de produção de rima (cujo objetivo era dizer alguma palavra que rimasse com outra). Havia o apoio do desenho das palavras-alvo. Por exemplo, quando solicitada rima para a palavra "girafa", apresenta-se a figura da girafa.
Aplicação: visual. Resposta: oral
Total = 6
7. Nomeação rápida
7.1 Letras
7.2 Números
Duas pranchas diferentes: uma contendo um conjunto de 25 letras; e outra um conjunto de 25 números; em ambas a criança deve nomear os estímulos o mais rápido que conseguir.
Aplicação: visual, registro de tempo. Resposta: oral.
Total = 50 (somado à pontuação obtida a partir do tempo de nomeação)
8. Memória imediata
8.1 Dígitos
8.2 Pseudopalavras
Duas tarefas: uma para repetição de seis sequências crescentes de dígitos; outra para repetição de seis sequências de pseudopalavras.
Aplicação: oral. Resposta: oral.
Total = 12

 

A pontuação do teste foi organizada de maneira que cada erro cometido pela criança é considerado um ponto; desse modo, quanto mais pontos ela obtém no teste, pior é seu desempenho.

O sistema de pontuação foi diferenciado em três subtestes, considerando as características da atividade:

- No subteste "Atenção visual", são considerados os erros de omissão (letras-alvo que a criança não assinala) e de adição (letras não-alvo assinaladas). Desse modo, a pontuação refere-se à soma dos dois tipos de erro, havendo possibilidade de um total de 195 pontos;

- No subteste "Habilidades motoras", cada figura é analisada individualmente, com pontuação zero (com detalhes e sem tremores no traçado), um (traços com tremores, sem modificar a estrutura completa) e dois (traçado com tremores, alterações de ângulos e omissões de partes da figura);

- Por fim, no subteste "Nomeação rápida", composto por uma prancha de letras e outra de números, cada estímulo nomeado incorretamente equivale a um ponto. Além disso, a cada cinco segundos de realização da tarefa a criança também recebe um ponto. As pontuações referentes aos erros cometidos são somadas àquelas obtidas em função do tempo. Exemplo: se uma criança realizou a tarefa em 18 segundos (18/5 = 3,6; arredondando-se esse valor para quatro, obtêm-se então quatro pontos); se cometeu um erro de nomeação, sua pontuação final será de cinco pontos.

Os quatro materiais que compuseram o TISD podem ser assim descritos:

 

  1. a) Caderno de instruções de aplicação e pontuação: apresenta as instruções de como deve ser aplicado o teste, os materiais que devem ser utilizados, os tipos de erros possíveis em cada subteste e os critérios de pontuação;

  2. b) Folha de resposta: nela são registradas as respostas dadas pelo avaliado. Foi divida em duas partes: (I) do avaliador, na qual o aplicador anota as respostas dadas e a pontuação obtida pela crian-ça; (II) da criança, composta pelos subtestes que exigem anotações do avaliado ("Escrita", "Atenção visual" e "Habilidades motoras");

  3. c) Caderno de aplicação: utilizado pelo ava-liador durante a aplicação do teste; apresenta as instruções de aplicação;

  4. d) Caderno de estímulos: caderno com os estímulos visuais dos subtestes de "Leitura", "Habilidades motoras", "Consciência fonológica" e "Nomeação rápida".

 

Na Figura 2 podem ser observados alguns exemplos de itens que compuseram cada subteste. A maioria do que está apresentado refere-se a itens do material "Folha de Resposta-Avaliador". Somen-te para os subtestes "Escrita" e "Cálculo" são apre-sentados itens de outros materiais, como a "Folha de Resposta-Criança" e o "Caderno de Aplicação", para melhor compreensão de seu conteúdo.

 

Figura 2. Exemplos de itens que compuseram cada subteste. 

 

DISCUSSÃO

O objetivo do presente trabalho foi apresentar o processo de construção de um instrumento para identificação de sinais de dislexia, denominado TISD. Concluídas as etapas para sua construção, o instrumento ficou composto por quatro materiais de aplicação e correção, referentes a oito habilidades/subtestes.

Para os subtestes "Leitura" e "Escrita", a seleção das palavras e o balanceamento do grau de dificuldade entre palavras regulares ou irregulares ou regra, e palavras de baixa ou alta frequência (posteriormente reformuladas, por sugestão dos juízes, para que houvesse no máximo três sílabas), foram realizados pela fonoaudióloga que participou da construção de todo o instrumento. Das nove palavras que compuseram cada um de ambos os subtestes, cinco foram de alta frequência e quatro de baixa frequência; dentre elas, três eram regulares, três irregulares e três para regra.

A leitura envolve processos fonológicos e lexicais. Na rota fonológica, encontra-se a conversão grafofonêmica (leitura) ou fonografêmica (escrita). Já na rota léxica tem-se a representação das palavras conhecidas, armazenadas no léxico, para serem re-conhecidas (leitura) ou produzidas (escrita). Segundo Salles e Parente (2007), ao se tomar o modelo de dupla rota, tem-se que, no uso da rota fonológica, as palavras com correspondência regular entre grafemas e fonemas são lidas ou escritas de modo mais rápido e preciso do que as palavras irregulares, em que as equivalências entre letra e som são arbitrárias e não explicadas por regras. A leitura por rota fonológica tende a regularizar as palavras irregulares, o que causa uma pronúncia incorreta e conflitos com o reconhecimento gerado pela rota lexical. Crianças com dislexia costumam apresentar dificuldades em todos esses tipos de palavras (Martins & Michallick-Triginelli, 2009), razão pela qual o balanceamento foi realizado.

Apesar disso, a inserção de pseudopalavras nesses dois subtestes justifica-se pelo fato de que esse tipo de palavra é lido/escrito por rota fonológica, não havendo representações internas da forma ortográfica no léxico mental, o que possibilita a avaliação dessa rota, comumente a mais prejudicada em relação à rota lexical em sujeitos com dislexia (Pinheiro & Rothe-Neves, 2001Ramus & Szenkovits, 2008Salgado & Capellini, 2008Salles & Parente, 2007). As pseudopalavras aqui utilizadas foram adquiridas por meio de estudo realizado por Pinheiro (1994).

Foram utilizadas todas as letras do alfabeto como estímulos para o subteste de "Atenção visual" por se tratar de um conteúdo verbal. Lima et al. (2012) e Ziegler, Pech-Georgel, Dufau e Grainger (2010) não verificaram alterações significativas de desempenho em testes de atenção nos quais os estí-mulos apresentavam menor demanda verbal (símbolos) em indivíduos com dislexia. Por outro lado, em testes que possuíam estímulos verbais (letras e dígitos) foi verificado baixo desempenho, provavelmente em razão do déficit fonológico.

As figuras presentes nos subtestes "Habili-dades motoras" e "Consciência fonológica" foram desenhadas especificamente para a utilização no TISD. Não houve reprodução de materiais e figuras registrados, respeitando o direito autoral de outros testes e produções científicas.

Especificamente para o subteste "Habilida-des motoras" foram inseridas formas geométricas básicas e um desenho formado por linhas (que formava um "X", com um dos traços curvo). A seleção e construção dessas figuras se justificaram em razão do estudo realizado por Santos e Jorge (2007), no qual foi encontrado baixo desempenho de crianças brasileiras com dislexia no teste Bender, que avalia a habilidade percepto-motora e possui como base algumas figuras com características geométricas.

A rima (identificação e produção) foi selecionada dentre as habilidades fonológicas para compor o subteste de "Consciência fonológica", pois estudos apontam que essa habilidade se desenvolve precocemente em crianças com desenvolvimento típico (Cao, Bitan, & Booth, 2008Pessoa & Paes, 2005), diferentemente das disléxicas (Lima et al., 2008Salgado & Capellini, 2008).

As tarefas presentes em "Cálculo" foram desenvolvidas abrangendo as quatro operações matemáticas, partindo das mais simples (adição e subtração) para as mais complexas (multiplicação e divisão). As atividades eram lidas pelo aplicador e deveriam ser respondidas oralmente pela criança. Esse subteste foi incluído a fim de ser contrastado com os outros, já que se espera um bom desempenho por parte das crianças disléxicas. Comumente, crianças com dislexia tendem a apresentar bom desempenho aritmético quando não envolve o reconhecimento/leitura de algoritmos nem a leitura do problema, provavelmente pela presença de con-teúdos verbais que permeiam ambos os tipos de leitura e que estão em prejuízo nesse transtorno (Caldonazzo, Salgado, Capellini, & Ciasca, 2006).

O desenvolvimento do subteste de "No-meação rápida" foi baseado no modelo de teste proposto por Denckla e Rudel (1974). Em um estudo nacional realizado por Capellini, Ferreira, Salgado e Ciasca (2007), no qual foi utilizado esse mesmo modelo, verificou-se baixo tempo na nomeação de números e letras por crianças com dislexia, quando comparados a um grupo controle sem queixas de dificuldades escolares e outro com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Daí a escolha de ambas as pranchas para o presente estudo.

A composição das duas tarefas do subteste "Memória imediata" foi decidida por terem sido observados prejuízos tanto na repetição de pseudo-palavras (Andrade et al., 2011Salles & Parente, 2006) quanto na repetição de dígitos (Capovilla et al., 2001) em sujeitos brasileiros com dislexia.

No processo de construção de instrumentos psicológicos, conforme apresentado por Pasquali (2009a), as primeiras etapas consistem na definição dos aspectos teóricos envolvidos com os construtos que serão avaliados e na definição operacional de seus itens. Com o TISD tais etapas foram cumpridas.

De acordo com Resolução n° 2/2003 do Con-selho Federal de Psicologia (Brasil, 2003), outras etapas precisam ser realizadas para que se possa finalizar a construção do TISD, tais como: apresentação de evidências empíricas de validade e precisão das interpretações propostas para os escores do teste, verificação das propriedades psicométricas dos itens do instrumento, organização de um manual que aborde os aspectos práticos (para o presente caso, aprimorar a parte aplicação já realizada, inserir os aspectos técnico-científicos também já levantados, acrescentar novos elementos, como os de correção e interpretação dos resultados do teste).

Para tanto, alguns procedimentos futuros estão previstos, conforme a literatura pertinente (Anastasi & Urbina, 2000Pasquali, 2001Pasquali, 2009b), para que seja realizada a análise dos parâ-metros psicométricos do TISD e obtidas as evidências de sua validade e confiabilidade, como: (a) análise empírica dos itens e subtestes; (b) comparação entre grupos critério como, por exemplo, entre crianças de diferentes grupos clínicos (dificuldades escolares, transtorno misto das habilidades escolares, deficiência intelectual, TDAH, dislexia) e crianças sem queixas de aprendizagem; (c) busca de correlações entre subtestes que fazem parte do TISD e outros testes já validados que meçam as mesmas habilidades que o compõem, e também entre o desempenho escolar.

Com a realização desses procedimentos, grupos normativos podem ser definidos a partir de parâmetros como gênero, idade e nível de escolaridade, de modo a ser estabelecido um padrão de referência para os resultados do teste, assim como um aprimoramento da sua padronização, o que inclui melhora nos meios adequados de sua aplicação e correção.

Por conseguinte, espera-se que, além de proporcionar a avaliação de habilidades neuropsicológicas prejudicadas em crianças com dislexia, o TISD seja um instrumento que auxilie na compreensão e na pesquisa neuropsicológica da dislexia.

 

REFERÊNCIAS

 

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Apoio: Fundação do Desenvolvimento Administrativo de São Paulo (Processo n° 50335111/2011).


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