Karla Julianne Negreiros de Matos, Francisco José Maia Pinto, Ana Carina Stelko-Pereira
19 de abril de 2022
Karla Julianne Negreiros de Matos, Francisco José Maia Pinto, Ana Carina Stelko-Pereira
Analisar a existência de possível associação entre a exposição ao abuso sexual na infância e qualidade de vida inferior em universitários.
Participaram da pesquisa 935 estudantes universitários que responderam ao questionário de prevalência de abuso sexual infantil e ao questionário abreviado de avaliação de qualidade de vida (WHOQOL-bref), bem como a questões sociodemográficas e sobre histórico de doenças clínicas. Utilizou-se o teste de associação do qui-quadrado e análise de regressão logística, tendo-se como desfecho a variável binária qualidade de vida (inferior; superior). No modelo final de regressão, aplicou-se o teste de sensibilidade para identificar o acerto entre os casos observados com qualidade de vida superior e o teste de especificidade aplicado aos casos observados com qualidade de vida inferior, bem como avaliou-se a eficiência global do modelo para um cutoff de 0,5.
A maioria dos participantes era: mulher (55,6%, 520), parda (52,3%, 489), solteira (58,4%, 546). A idade média foi de 21 anos (SD = ± 5) e a renda familiar média, de R$ 3.875,00 (SD = ± 4.690,00). A partir da regressão logística, observou-se que aumentaram a associação com qualidade de vida inferior: necessidade de acompanhamento psicológico, estar solteiro, sofrer violência sexual na infância, não ser de raça branca, praticar atividade física três vezes ou mais na semana, nascer no interior e praticar religião.
O estudo evidenciou que o abuso sexual infantil, mesmo transcorrido há muitos anos, associa-se negativamente à qualidade de vida de adultos.
Palavras-chave
Qualidade de vida; estudantes; abuso sexual infantil
To analyze the existence of a possible association between exposure to sexual violence in childhood and a lower undergraduate students’ quality of life.
A total of 935 university students participated in the research and answered the following instruments: sexual abuse prevalence questionnaire, abbreviated life quality questionnaire (WHOQOL-bref), and a questionnaire involving sociodemographic issues and a history of clinical diseases. The chi-square association test and logistic regression analysis were used, having as the binary endpoint variable the life quality (lower and higher). In the final regression model, the sensitivity test was applied to identify the correctness among the cases observed with superior life quality and the specificity test applied to the cases observed with lower life quality. The overall efficiency percentage of the model was applied to a cutoff of 0.5.
The majority of participants were: female (55.6%, 520), brown (52.3%, 489), single (58.4%, 546). They were at the average age of 21 years old (SD = ± 5) and average family income of R$ 3,875.00 (SD = ± 4,690.00). From logistic regression, it was observed association with inferior life quality: need for psychological counseling, being single, suffering sexual violence in childhood, not being Caucasian, practicing physical activity three times or more a week, being born in rural area and practicing religion.
The study showed that sexual abuse, even after many years, still has an association with inferior life quality of university students.
Keywords
Quality of life; students; child sexual abuse
O abuso sexual infantil (ASI) é apontado, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como uma das mais proeminentes questões de saúde pública, definindo-se por atos que envolvem coagir ou motivar crianças a participarem de práticas sexuais, tais como: obrigar a assistir a sexo ou pornografia, a masturbar-se em público, a posar eroticamente para fotos e filmes, a realizar toques e carícias sexuais e a praticar sexo genital, anal e oral. Portanto, o ASI engloba tanto situações sem contato físico como com contato físico, sem penetração e com penetração. O ofensor é um indivíduo que está em estágio de desenvolvimento superior à vítima e/ou em uma relação de responsabilidade, confiança ou poder em relação a ela. O ASI frequentemente é crônico, por ofensores que envolvem a criança em um processo gradual de sexualização e que costumam ser familiares das vítimas ou responsáveis por elas1. Para além do ASI, é possível também durante a infância e a adolescência sofrer violência sexual por pares2, como por colegas de escola.
A violência sexual na infância e adolescência é um fenômeno frequente no Brasil e em outros países. Uma metanálise de 244 artigos sobre maus-tratos infantis apresentou a proporção de 127 pessoas vítimas de ASI a cada 1.000 pessoas; para meninos essa taxa é de 76/1.000 e para meninas, de 180/1.000. Nesse mesmo estudo, apresentou-se que na América do Sul cerca de 13% de meninos e meninas são abusados sexualmente3. Um censo com escolares do nono ano do ensino fundamental realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em parceria com o Ministério da Educação e da Saúde indicou que 4% responderam afirmativamente à questão “Alguma vez na vida você foi forçado a ter relação sexual?”, e 32,6% por familiares, dos quais 11,9% por pai/mãe/padrasto, 26% por namorado/ex-namorado e 21,8% por amigos2. Outros estudos brasileiros também vêm demonstrando que as vítimas são predominantemente do gênero feminino e que grande parte das violências sexuais ocorre em ambiente familiar4,5.
É conhecido o fato de que a ASI acarreta efeitos negativos no desenvolvimento das crianças e dos adolescentes6 e que se reflete na vida adulta. Em revisão de literatura2, destaca-se que as crianças que sofreram maus-tratos na infância, entre eles abuso sexual, apresentaram sequelas que costumaram durar até a idade adulta, incluindo mudanças de longo prazo na estrutura cerebral, problemas de saúde mental e física, comportamentos de risco, problemas com o funcionamento social e redução da expectativa de vida. Ademais, é mais provável que as vítimas de maus-tratos na infância apresentem mais gastos com problemas de saúde e se aposentem precocemente7.
Existe a hipótese de que acontecimentos traumáticos sensibilizam o cérebro – especialmente durante o período da infância, em que há constantes transformações na organização cerebral –, desorganizando-o quimicamente e tornando seu funcionamento atípico e disfuncional. Quando crianças são expostas a eventos muito traumáticos (por exemplo, abusos físicos e sexuais intensos), os caminhos neurológicos que são responsáveis pelas respostas de “luta ou fuga” são superativados por um prolongado período de tempo8.
Embora haja estudos que apontem sequelas neurológicas e problemas mentais, como transtorno depressivo, de estresse pós-traumático e tentativas de suicídio6, à s vítimas de abuso sexual na infância, poucos estudos evidenciaram o impacto na qualidade de vida (QV) de crianças que sofreram maus-tratos, principalmente após terem sido transcorridos vários anos9,10. Entende-se por QV a “percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações (p. 1405)”, segundo a OMS11. Assim, este estudo se propôs a analisar a existência de possível associação entre a exposição à violência sexual na infância e uma qualidade de vida inferior (QVI) no período adulto, em adultos universitários, levando em consideração a influência conjunta de outras variáveis, como sexo e etnia. Hipotetizava-se que a violência sexual na infância se associaria a uma QVI na vida adulta.
Este estudo é do tipo transversal, com abordagem descritiva e analítica, teve como participantes 935 estudantes da Universidade Estadual do Ceará, do campus de Fortaleza, que é organizado em seis centros: Ciências da Saúde, da Educação, de Humanidades, de Estudos Sociais Aplicados, de Ciências e Tecnologia e Faculdade de Veterinária. Esses alunos representavam proporcionalmente cerca de 10% dos alunos de cada centro e do total de alunos da universidade, tendo sido convidados a participar pelo pesquisador, em suas salas de aula, em horário letivo. Assim, a amostra de participantes foi recrutada por conveniência. Houve 38 alunos que foram convidados, mas não aceitaram participar da pesquisa.
Foram utilizados dois questionários de autorrelato, os quais foram aplicados coletivamente nas salas de aula dos participantes. Um deles é o Questionário de Prevalência de Violência Sexual na Infância, o qual foi elaborado por 12 pesquisadores e profissionais da área da psicologia forense, de diferentes regiões brasileiras, com titulação mínima de mestrado, todos vinculados a programas de pós-graduação, e compondo o grupo “Tecnologia Social e Inovação: Intervenções Psicológicas e Práticas Forenses contra Violência” da Associação de Pesquisa em Psicologia12. O grupo reuniu-se ao longo de dois dias a fim de compor os itens do instrumento, que se compôs de 32 questões, divididas em três partes, das quais, para este estudo, apenas a primeira e a segunda foram utilizadas. A primeira parte contém sete perguntas sobre questões para identificar características sociodemográficas dos respondentes, como: “Com quem você mora?”.
A segunda parte do questionário apresentava 13 questões sobre se o respondente vivenciou situações de abuso, seja sem contato físico, com contato físico, sem penetração e com penetração, até a idade de 14 anos, investigando a frequência dessas situações, com as opções de resposta: nunca, algumas vezes e muitas vezes. Cabe ressaltar que o(s) ofensor(es) podiam ou não estar em estágio de desenvolvimento superior ao da vítima e/ou em uma relação de responsabilidade. As perguntas dessa parte englobaram realizar comentários com conteúdo sexual inapropriado direcionados à criança, fazer gestos para a criança simulando masturbação ou sexo, obrigar a ver fotos eróticas ou fazer/enviar fotos eróticas, mostrar filmes com cenas de sexo em vídeo ou pela internet, requisitar que a criança fique despida por motivos sexuais, masturbar a criança ou solicitar masturbação, acariciar ou tocar genitais, introduzir objetos na vagina ou ânus, realizar ou receber sexo oral e anal, praticar sexo genital e prostituição. Com o banco de dados deste estudo, notou-se que o instrumento apresentava um índice de alfa de Cronbach de 0,89 quanto à s questões de frequência, apresentando alta consistência interna.
Outro instrumento empregado foi o WHOQOL-bref, o qual é um instrumento de avaliação de QV que investiga a capacidade física (sete questões), o bem-estar psicológico (seis questões), as relações sociais (três questões) e o meio ambiente onde o indivíduo está inserido (oito questões). Esse instrumento apresenta evidências de validade e precisão em estudos realizados no Brasil13–16. Ademais, empregaram-se questões elaboradas para o estudo a fim de caracterizar os participantes sociodemograficamente e quanto a doenças clínicas.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAEE 31448214.9.0000.5534), e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Ademais, após a coleta de dados, forneceu-se um folder17 para que os participantes se informassem sobre o fenômeno da violência sexual infantil e a Lei Joana Maranhão (Lei n° 12.650/2012), a qual apresenta os direitos dos indivíduos adultos que foram abusados sexualmente quando crianças.
Os dados foram digitados sem identificação dos participantes pela equipe de recursos humanos, tendo-se utilizado o SPSS versão 18.0 (Statistical Package for Social Science) para as análises. Foram realizadas análises descritivas quanto à s características sociodemográficas e, em seguida, foram calculados os escores totais de QV de cada participante e o escore médio do grupo de participantes. Os indivíduos que tiveram escore total igual ou acima do valor correspondente à média mais um desvio-padrão (74,1 pontos) foram classificados como com qualidade de vida superior (QVS), enquanto os indivíduos que apresentaram escore igual ou abaixo da média menos um desvio-padrão (49,9 pontos) foram categorizados como com QVI. Os indivíduos que obtiveram escores de QV entre 50 e 74, isto é, que não foram classificados como tendo QV nem inferior e tampouco superior, ou seja, que tiveram um escore próximo à média da população total de 935 alunos, foram excluídos das análises subsequentes (639 estudantes).
As análises posteriores envolveram as variáveis: idade (menos de 20 anos e mais de 21 anos), sexo (masculino, feminino), etnia (branca, não branca), conjugalidade (com companheiro, sem companheiro), prática religiosa (sim, não), local de nascimento (capital, interior), se exerce atividade remunerada (sim, não), se sofreu acidente grave (sim, não), se pratica atividade física no mínimo três vezes na semana (sim, não), se possui doença crônica (sim, não), se recebe atendimento psiquiátrico (sim, não), se recebe atendimento psicológico (sim, não) e se fez uso de medicação psiquiátrica (sim, não). Ademais, incluiu-se a variável se foi vítima de violência sexual na infância (sim ou não), tendo-se considerado como vítima os respondentes que não marcaram no Questionário de Prevalência de Abuso Sexual, em sua segunda parte, a resposta “nunca” para qualquer uma das 13 questões sobre envolvimento em abuso sexual. Essas análises subsequentes foram o teste de associação do qui-quadrado de Pearson, cruzando-se a variável QV (inferior ou superior) com cada uma das outras variáveis já descritas e, na impossibilidade dele, o da razão de máxima verossimilhança, em nível de significância de 5%.
Seguidamente a essas análises, fez-se análise de regressão logística para quantificar a associação entre QVI e as outras variáveis do estudo, conjuntamente, por meio da razão de chances. Para a análise de regressão, exclui-se os participantes que deixaram de preencher qualquer uma das questões relativas a idade, sexo, etnia, conjugalidade, prática religiosa, local de nascimento, se exerce atividade remunerada, se sofreu acidente grave, se pratica atividade física, se possui doença crônica, se recebe atendimento psiquiátrico, se recebe atendimento psicológico, se fez uso de medicação psiquiátrica e se foi vítima de violência sexual na infância. Assim, para essa análise, a quantidade de participantes foi de 245, dos quais 128 tiveram QV superior e 117 inferior.
Por meio do teste de Hosmer-Lemeshow, rejeitou-se a hipótese nula de que as frequências esperadas e observadas seriam iguais. Consideram-se como entrada no modelo as variáveis que em análise por qui-quadrado apresentaram p < 0,20 e, para permanecerem no modelo, apenas aquelas que apresentaram p < 0,05. O método de seleção das variáveis do modelo de regressão foi o de seleção manual, a fim de levar em conta o que a literatura já apontava como variáveis de maior influência na QV. No modelo final de regressão, aplicou-se o teste de sensibilidade para identificar o acerto, entre os casos observados com QVS, e o teste de especificidade aplicado aos casos observados com QVI. Aplicou-se o percentual de eficiência global do modelo para um cutoff de 0,5.
O perfil dos 935 participantes foi: a maioria dos participantes era do sexo feminino (55,6%, 520), parda (52,3%, 489), solteira (58,4%, 546), morando com a mãe (75,7%, 708). Houve a predominância dos pais e mães com escolaridade máxima até o ensino fundamental – 37,6% (326) e 36,9% (306), respectivamente. A renda média familiar foi de R$ 3.875,00 (SD ± 4.690,00). A média de idade foi de 21 anos (SD ± 5), sendo o mais jovem de 16 anos e o mais velho de 63 anos.
A média de QV dos participantes foi de 62,4 (DP = ±12,15), sendo 16,2% (152) classificados como com QVI, 15,5% (144) com QVS e 68,3% (639) com QV mediana, sendo os com QV mediana descartados das análises subsequentes. Dos que apresentavam QV inferior, a maioria (63,1%, 101) foi vítima de abuso sexual na infância, seja este com ou sem penetração, enquanto, dos que apresentavam QVS, 36,9% (59) foram vítimas dessa mesma violência.
A partir do qui-quadrado (Tabela 1), observou-se que houve diferença significativa entre os grupos com QV inferior e superior quanto a: etnia, conjugalidade, realizar atividade física três vezes ou mais por semana, ser portador de doença crônica, ter tido atendimento psiquiátrico e/ou psicológico, usar medicação psiquiátrica e ter sofrido violência sexual na infância.
Foram realizados 10 blocos na análise de regressão logística binária até se estabelecer o modelo final, o qual considerou conjuntamente as diversas variáveis do estudo a fim de predizer QVI. Por meio do Teste Omnibus, verificou-se a hipótese quanto a se os coeficientes do modelo de regressão seriam nulos, tendo-se obtido o valor do qui-quadrado de 71.321 (g.l. = 7) com significância menor que 0,001. Por meio do teste de Hosmer-Lemeshow, rejeitou-se a hipótese nula de que as frequências esperadas e observadas seriam iguais – qui-quadrado 3.009 (g.l. = 7) com significância menor de 0,884.
O modelo final de regressão elaborado permitiu classificar dos 128 casos observados como QV superior, 96 corretamente, representando 75,0% de acerto (sensibilidade). Dos 117 casos observados como QVI, 82 foram classificados corretamente, representando 70,1% de acerto (especificidade). O percentual de eficiência global do modelo foi de 72,7% para um cutoff de 0,5. De acordo com a estatística Z de Wald e o nível de significância adotado de 0,05, constatou-se que alguns coeficientes foram estatisticamente diferentes de zero (Tabela 2).
Após análise de regressão logística, as variáveis que se mantiveram associadas a QVI em ordem decrescente de importância, conforme a Tabela 2, foram: a) ter necessitado de atendimento psicológico (3,78 mais associado com QVI do que quem não necessitou); b) estar solteiro ou sem companheiro (2,43 mais associado com QVI do que com companheiro); c) ter sido vítima de abuso sexual na infância (1,55 mais relacionado com QVI do que quem não foi vítima); d) não ser branco (1,53 mais relacionado com QVI do que quem é branco); e) praticar atividade física três vezes ou mais na semana (0,67 mais associado com QVI do que quem não pratica); f) morar no interior (0,57 mais associado com QVI do que quem nasceu na capital); g) quem se diz com religião (0,49 mais relacionado com QVI do que quem afirma não ter religião). As variáveis que não chegaram ao modelo final, mas que haviam sido significativas em análise de qui-quadrado foram: ter doença crônica, ter necessidade de acompanhamento psiquiátrico e utilizar de medicações psiquiátricas, de modo que, quando consideradas conjuntamente com as outras variáveis investigadas neste estudo, não contribuíram para predizer QVI em universitários.
Este estudo teve como objetivo analisar a existência de possível associação entre a exposição à violência sexual na infância e uma QVI na vida adulta, tendo como participantes universitários, e considerando conjuntamente as variáveis: idade, sexo, etnia, conjugalidade, prática religiosa, local de nascimento, exercício de atividade remunerada, sofrer acidente grave, praticar atividade física, possuir doença crônica, receber atendimento psiquiátrico e psicológico e usar medicação psiquiátrica.
Os participantes deste estudo apresentaram semelhanças com a população brasileira, a qual se refere a uma maioria de mulheres (51%), e o percentual neste estudo foi de 55%. Quanto à idade dos participantes, verificou-se que tinham em média 20 anos; esses se incluem no grupo de cerca de 49,68% dos brasileiros que possuem até 24 anos11. Quanto à etnia, o IBGE18 apresenta que no Brasil 47,7% se dizem brancos, 43,1% pardos, enquanto, entre os participantes deste estudo, 40% se declararam brancos e 51% pardos. Quanto à renda familiar média dos participantes deste estudo, essa envolveu cerca de cinco salários mínimos, de modo que os participantes se incluiriam nos 70% dos brasileiros que possuem renda familiar superior a três salários mínimos.
A prevalência de violência sexual infantil encontrada foi bastante superior à de estudos internacionais e nacionais, possivelmente porque nesta investigação se consideraram não somente situações de abuso sexual com contato físico e/ou com penetração, mas também situações sem contato, como expor a pornografia ou sexo, obrigar a masturbar-se diante do ofensor, entre outras1,2. Destaca-se também que o(s) ofensor(es) podiam ou não estar em estágio de desenvolvimento superior ao da vítima e/ou em uma relação de responsabilidade.
Ademais, notou-se que a variável sofrer violência sexual na infância associou-se à QVI, evidenciando que, mesmo passados muitos anos da vitimização, ela pode continuar impactando negativamente na QV. Esse resultado foi semelhante ao que a literatura científica aponta. Risman et al.19, em um estudo sobre abuso sexual intrafamiliar, apontaram que não é incomum que vítimas apresentem sequelas da violência após muitos anos do ocorrido, e muitas vezes elas apenas compreendem a dimensão do abuso que sofreram quando adultas. Fergusson et al.20 apresentaram que violência sexual na infância se associa à depressão, à ansiedade e à ideação/tentativa de suicídio na vida adulta. Rinfret-Raynor e Cantin21 e Thorne-Finch22, em estudo com vítimas de violência, apontaram que os sentimentos depressivos, de baixa autoestima e de apatia, gerados pela violência, dificultam a busca de resoluções para o sofrimento, o que explica o fato de as vítimas na infância ainda apresentarem efeitos quando adultos. O estudo de Al-Fayez et al.23 com 4.467 estudantes do ensino secundário do Kuwait avaliou a prevalência de abuso sexual e impacto na QV. Os resultados apontaram correlações negativas e significativas entre escores de abuso e domínios de QV (rho > 0,25, p < 0,001).
Apesar do resultado encontrado neste estudo mostrando associação entre sofrer violência sexual na infância e QVI na vida adulta, não se deve considerar como uma certeza. O impacto da violência depende de vários fatores, os quais não foram investigados neste estudo: tempo de exposição à agressão, idade da vítima, tipo de abuso, nível de relação com a agressor, suporte social e profissional recebido, entre outros24,25.
Em relação à s outras variáveis estudadas – sexo, idade, exercer atividade remunerada, apresentar doença crônica, ter tido necessidade de consultas com psiquiatra, ter feito uso de medicação psiquiátrica e apresentar deficiência –, elas não foram associadas significativamente à QV em universitários. Algumas delas estariam associadas a menor QV: ser mulher, segundo Silva e Heleno26, trabalhar enquanto cursa a universidade27, apresentar doenças crônicas28 e apresentar problemas de saúde mental29. Porém, nenhum desses estudos realizou análises estatísticas mais robustas como regressão, utilizando em sua maioria teste qui-quadrado e teste t, dificultando comparações com os resultados do presente estudo.
Hipotetiza-se que, para os universitários de uma instituição pública, as questões de gênero, tão comuns na sociedade (machismo, desrespeito à mulher etc.), foram amenizadas pelo maior acesso à educação. O estudo de Silva e Heleno26 com 257 estudantes universitários sobre QV e o bem-estar subjetivo apresentou que maior satisfação com a vida foi encontrada nos estudantes do gênero masculino. No entanto, a presente pesquisa não apresentou diferenças significativas entre os sexos.
Já em relação à idade, o grupo pesquisado era bastante homogêneo, de modo que estar na faixa etária abaixo ou igual a 20 ou acima de 21 não fez diferença estatisticamente significativa para a QV, uma vez que a maior parte era de jovens. Quanto ao fato de exercer atividade remunerada não ter influenciado na QV, algumas considerações podem ser realizadas: (a) muitos participantes afirmaram exercer essa atividade mesmo quando eram bolsistas de extensão, pesquisa ou monitoria, a qual envolve somente 8 horas semanais de atividades; (b) não se questionou sobre as condições de trabalho, de modo que os alunos podem ter baixa carga horária ocupacional devido à lei do estágio e estar empolgados pelo primeiro emprego, pelo fato de a maioria ser de jovens universitários. Conforme o Ministério da Saúde30, há diversos fatores que devem ser levados em consideração para avaliar os riscos à saúde de uma ocupação, tais como: insalubridade, carga horária total, período, entre outros que neste estudo não foram avaliados.
Segundo Noce et al.31, as pessoas portadoras de deficiência física podem apresentar níveis de sedentarismo elevados, influenciando de forma decisiva na percepção de sua QV. No entanto, neste estudo, foram poucos os indivíduos com tipos mais graves de deficiência e houve quem tivesse miopia leve e assinalou a questão. Esse fato revela o quanto as políticas de acessibilidade à educação estão sendo pouco implementadas, ainda que existam leis que instituem igualdade de condições, como a Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015.
Em relação à s etnias, o grupo dos não brancos, compostos em sua maioria por pardos e negros, apresentou maior associação com QVI. Esses dados são semelhantes aos americanos, visto que a revisão de Pereira et al.32 apontou que a maioria dos estudos sugere que negros têm pior QV. Assim, é perceptível que a não igualdade de condições entre brancos e não brancos ainda existe na sociedade brasileira, permeada pelo preconceito, e acarreta a dificuldade de acesso a vários direitos33.
Em relação ao nascer no interior apresentar maior associação com QVI, não foram encontrados estudos que façam essa relação. Hipotetiza-se que o menor acesso a serviços de saúde, educação e lazer, quando se vive no interior, explicaria esse resultado. A revisão integrativa de Scorsolini-Comin e Santos34 apresenta a importância da satisfação conjugal para a QV, apontando que as pessoas que não estão em relacionamentos apresentam maior associação com QVI.
Já em relação à associação entre ter uma religião e QVI, os resultados deste estudo são discordantes com a literatura. Há estudos que apontam a inter-relação entre o bem-estar espiritual e a saúde geral35–37. É possível também que este resultado seja singular ao público universitário, pois ele é considerado um dos mais secularizados38, sendo importantes estudos futuros sobre o tema.
Outra variável que necessita de mais investigações se refere ao fato de a necessidade de atendimento psicológico ter tido maior associação com QVI. Peres et al.39 apontaram que o trabalho terapêutico melhora a QV39, mas Padovani et al.40 relataram que universitários costumam desvalorizar sintomas, levando a identificação tardia e, muitas vezes, a tratamentos inadequados. Assim, muitas vezes, os que procuram atendimento psicológico podem ter buscado ajuda profissional por conta de sintomas mais graves e neste estudo não se questionou a motivação para os atendimentos psicológicos.
Esperava-se no presente estudo que praticar atividade física ao menos três vezes na semana estaria associado à QVS, o que não foi percebido, contrariando alguns estudos41,42. Oliveira et al.43 sugerem ser importante não apenas se avaliar se há prática de atividade física, mas também o tipo e a intensidade, se há orientação para essa prática, a finalidade do exercício físico, a existência de lesões devidas a uma prática incorreta, entre outros. É necessário que se realizem outros estudos sobre a relação entre atividade física e QV de universitários, uma vez que eles podem estar realizando uma prática excessiva pela busca do corpo perfeito, devido a pressões sociais, o que indicaria uma percepção de QVI.
Este estudo apresenta algumas limitações. Não há consenso quanto ao ponto de corte do instrumento WHOQOL-bref para delimitar QV inferior e superior, de modo que no presente estudo foram utilizados arbitrariamente os critérios da média e desvio-padrão. O fato de não terem sido analisados o curso, o período e o turno dos estudantes é outra limitação, pois Oliveira44 e Catunda e Ruiz27 apontaram esses fatores como variáveis importantes na QV dos alunos. Outra limitação é a pequena quantidade de participantes que, após a divisão da amostra pelo escore de QV, foram incluídos nos extremos de QVI e QVS, sendo importante em estudos futuros incluir uma amostra maior e mais diversa, também com alunos de universidades particulares.
Este estudo teve como objetivo investigar se ser vítima de abuso sexual na infância se relaciona à QV quando adulto, considerando também a influência de outros aspectos, como sexo, prática de atividade física, entre outros. Foi possível notar que ser vítima na infância influenciou na QV atual, sendo muito importante que haja políticas públicas para prevenir, intervir e remediar esse tipo de violência. É também essencial que se amplie a discussão sobre o ASI e a necessidade de formar os profissionais e serviços de saúde para atenção e cuidado integral das vítimas a curto e longo prazo.
Apesar das limitações deste estudo, esta pesquisa é pioneira na análise da QV de estudantes universitários no Ceará e no Brasil. É um dos poucos estudos que empregou análises estatísticas mais complexas e que estudou a relação entre abuso sexual na infância e QV adulta. Ainda assim, é imprescindível o desenvolvimento de outros estudos sobre a temática, por exemplo, com universitários de outras regiões do país, com a população em geral, entre outros.