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Lost Girls faz da pornografia um deleite intelectual

Por: Adriano Marangoni

11 de maio de 2007

O Estado de São Paulo - www.estadao.com.br

Data original: 11/05/2007 - 14h29

Lost Girls faz da pornografia um deleite intelectual


HQ narra o encontro nada casual de três personagens infantis: Wendy de Peter Pan, Dorothy de O Mágico de Oz e Alice de Alice no País das Maravilhas

Adriano Marangoni

Reprodução
Capa de Lost Girls

SÃO PAULO - Depois de muita expectativa finalmente chega às livrarias a edição brasileira de Lost Girls, de Alan Moore e Melinda Gebbie (Lost Girls vol. 1 - Garotas Crescidas, Devir, R$ 65, 21 x 28 cm, 112 páginas). Escrita pelo excêntrico autor de HQs e desenhada por Gebbie, a graphic novel narra o encontro de três célebres personagens da literatura e cinema infantil, Wendy de Peter Pan, Dorothy de O Mágico de Oz e Alice de Alice no País das Maravilhas. Mas que o leitor desavisado não se engane: Lost Girls é pornografia. Em forma bruta.

Dito isso, não se deve associar Lost Girls à vulgaridade barata. Acima de tudo o livro é uma fábula extremamente sofisticada. O volume lançado este mês pela Devir (mais dois estão previstos para junho e setembro de 2007) é o primeiro ato de um enredo bem elaborado. Nele, as três protagonistas se conhecem às vésperas da 1ª Guerra Mundial e durante o encontro trocam histórias de suas aventuras, metáforas detalhadas para as experiências sexuais da juventude.

No ano passado a obra foi alvo de críticas na Inglaterra, terra natal de Alan Moore. Lá, o Great Ormond Street Hospital, instituição que detém os direitos autorais de Peter Pan, entrou com processo legal proibindo a publicação de Lost Girls. Segundo o hospital, a obra fazia uso indevido dos personagens criados por J.M. Barrie no início do século 20.

A Top Shelf Comics, editora americana que publica Lost Girls, só poderá editar a obra na Inglaterra a partir de 2008, ano em que expiram os direitos de propriedade autoral do Great Ormond Street Hospital. O acordo entre a Top Shelf e a Devir Livraria para publicação que chega agora ao Brasil foi feito em outubro de 2006.

Lesbianismo, incesto e pedofilia dão o tom nesta edição. Repetidos e alternados com homossexualismo, sadomasoquismo e referências históricas nos outros volumes, Lost Girls é a investida de Moore num campo já abordado em outras de suas criações, mas de maneira superficial.

Entre vasta obra, ele é autor dos quadrinhos Miracleman, V de Vingança, Watchmen e do romance A Voz do Fogo. Em cada um, sexo e sexualidade desempenham alguma função importante no desenrolar das histórias mas ocupando um espaço periférico no enredo.

Nos quadrinhos escritos por Moore, especialmente aqueles com super-heróis, o encontro de duas forças (ou corpos) só pode resultar em duas possibilidades: o conflito (e eventual destruição) ou a união (uma harmonia produtiva). Interpretação do autor da velha oposição filosófica entre Eros e Thanatos, em Lost Girls Alan Moore faz da fábula infantil uma analogia do sexo como comunhão e da guerra como seu contraponto absoluto.

O volume 1 da obra mostra o encontro das já adultas Wendy Darling, Dorothy Gale e Alice Fairchild num hotel peculiar. Numa região fronteiriça dos Bálcãs, a já idosa Lady Fairchild convida Wendy e Dorothy para bucólicos passeios entremeados por intensas orgias e histórias fantásticas. Um ciclone capaz de levar pessoas para outro mundo. Um jovem rebelde que conhece o caminho para um local mágico. Um coelho apressado que se esconde num túnel sem fim. Nesses termos não é difícil associar os contos infantis a imagens sexuais. O que normalmente é barrado pela moralidade ou nostalgia, os autores transformam em painéis que mistura obscenidade a requinte artístico.

A heroína de Peter Pan aqui é uma senhora casada de hábitos contidos e fala hesitante. Instigada por Dorothy e Alice ela revela sobre o dia em que, adolescente, junto dos irmãos menores, conheceu um menino de rua que brincava de fazer sexo com a irmã e seus amigos nos jardins de Londres. Suas únicas preocupações se voltavam contra um sujeito assustador, pedófilo, com uma mão aleijada em forma de gancho. Logo, Wendy descobriria que naquele lugar toda brincadeira era permitida, uma terra de eterna satisfação de onde ninguém deseja voltar.

Mais impulsiva, Dorothy lembra de quando vivia em sua fazenda do Kansas e de como a vida ali podia ser entediante. Até o dia em que a natureza (dentro e fora dela) arrebata seus sentidos. O perigo externo do ciclone é o gatilho para a descoberta do próprio corpo. Embora saudosa dali em diante Dorothy sabia que mundo já não era o mesmo lugar. A melhor saída é explorá-lo.

Alice, personagem mais forte da história, dá sua versão dos acontecimentos da sua infância. Diferente das outras, a descoberta sexual não veio apenas da sua vontade, mas por obra de um sujeito de cabelos brancos, amigo de seu pai, que depois de oferecer alguns copos de vinho a apresentou para um mundo bizarro enquanto desabotoava suas roupas. Inebriada pelo álcool, Alice viu no espelho de sua casa uma versão invertida e atraente de si mesma e fez da imagem sua amante. Dali em diante visitaria um país de maravilhas sexuais.

Nos volumes posteriores de Lost Girls dá-se conta que, depois do episódio, Alice criou certa aversão aos homens. Dorothy tornou-se uma libertina expulsa de casa pelos pais. Wendy, como já dito, uma dama conservadora casada com um senhor de idade com vontades sexuais limitadas. Vidas adultas resultadas de experiências distintas.

O traço de Melinda Gebbie compõe o texto com precisão. No geral as ilustrações podiam ser como de qualquer livro infanto-juvenil caso não se tratassem de imagens de sexo explícito. Em outros momentos a desenhista chega mesmo a reproduzir o estilo de artistas como Aubrey Beardsley e Franz von Bayros, pintores marginais do século XIV que ganharam notoriedade por suas obras eróticas. Nomes que só circulariam em meios eruditos caso não fossem claras inspirações dos autores.

De fato, Alan Moore é um estudioso de uma miríade de tendências subversivas, marginais ou underground, além de um vasto domínio da filosofia e particular interesse por psicologia, sempre bem demonstrado nas "simplórias" histórias em quadrinhos. Na própria psicologia já foi dito que os contos de fadas têm função de amenizar os traumas infantis.

Na medida em que seus leitores se projetam nas personagens, desenvolvem um vocabulário emocional rudimentar que os preparam para a vida adulta. No caso de Lost Girls, aparentemente, os autores fazem o caminho inverso. Da vida adulta, em suas chocantes contradições, interpreta-se o imaginário infantil.

A edição que chega agora às livrarias fala de princípios e descobertas. O interesse neste volume se mantém na surpresa de ver personagens conhecidos de uma maneira até então inédita. Ao leitor que mantém um (saudável) distanciamento da história chegará a descobrir nos outros volumes que a pornografia de Alan Moore e Melinda Gebbie serve a um propósito artístico claro, no mais das vezes negligenciado em nome do lucro (vide o último filme do Homem-Aranha, cujo roteiro incluiu às pressas o personagem Venom apenas para alcançar um público maior).

Deleite intelectual, Lost Girls não exclui novos leitores. Ao contrário, dá chance de explorar a arte, seja boa ou ruim, de uma maneira acessível, sem presunção, substituindo fórmulas indecifráveis e morais conservadoras por um denominador comum, a própria sexualidade.


Notícia original:

http://www.estadao.com.br/arteelazer/letras/noticias/2007/mai/11/176.htm

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