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Cremesp constata falhas no atendimento dos Centros de Atenção Psicossocial
Falta de retaguarda para emergências e internação psiquiátrica, ausência de atendimento médico clínico, profissionais em número insuficiente, erros em prontuários e ausência de registro no Cremesp são alguns dos problemas encontrados em 85 unidades do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) no Estado de São Paulo
Mapelli, Bacheschi e Mauro Aranha: Caps são fundamentais, mas devem propiciar atendimento de melhor qualidade
Falhas importantes no funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), responsáveis pela assistência em saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS), foram detectadas por estudo inédito do Cremesp, apresentado em entrevista coletiva de imprensa no dia 23 de março. Dentre os resultados da fiscalização, ficou evidenciado que 42% dos Caps não contavam com retaguarda para internação psiquiátrica, 31,3% para emergências psiquiátrica e 25,3% para emergências médicas clínicas. E ainda, 66,7% não disponibilizam atendimento médico clínico na unidade. Entre os 33,3% que realizam esse tipo de atendimento, 25% o fazem de maneira sistemática e 8,3% apenas ocasionalmente.
O Cremesp constatou que 69,4% dos Caps avaliados fizeram referência à falta de profissionais, sendo que 50 deles não dispunham de médicos clínicos. Em dez Caps – um na modalidade álcool e droga e nove na infantil –, havia um único psiquiatra disponível. Em 16,7% deles não havia responsável médico e, mesmo entre os que contavam com esse profissional, 66,2% dos serviços não possuíam registro no Cremesp, o que é obrigatório.
Essas e outras evidências foram encontradas num universo de 85 Caps, amostra significativa dos 230 centros em funcionamento em todo o Estado de São Paulo. Realizado em 2008 e 2009 pelo Departamento de Fiscalização do Cremesp, o levantamento contou com a participação de especialistas de várias instituições. O roteiro de vistorias do Cremesp teve como referência o cumprimento da Portaria do Ministério da Saúde Nº 336/2002, que define as regras para o funcionamento dos Caps.
Apesar dos problemas encontrados, Mauro Aranha, diretor 1º secretário e coordenador do estudo e da Câmara Técnica de Saúde Mental do Cremesp, acredita que “não devemos demonizar o Caps como ideia”, mas admite que o sistema está deficitário como aplicação concreta dentro do conceito de atendimento à saúde mental. E acrescenta: “Entendemos que ele é fundamental, mas tem de propiciar atendimento de melhor qualidade e realmente integrado e multiprofissional, sem predominância nem exclusão do médico”.
Os Caps são os principais serviços de atendimento a pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, incluindo a dependência de álcool e drogas. Apontados como substitutivos dos hospitais psiquiátricos, eles integram a Política Nacional de Saúde Mental, conforme a Lei Federal 10.216/2002. Vale destacar que mais de 10% da população geral brasileira necessita de algum atendimento em saúde mental, seja ele contínuo ou eventual, mas essas pessoas têm encontrado muitas dificuldades para um tratamento efetivo.
Para Ronaldo Laranjeira, psiquiatra e coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas na Faculdade de Medicina da Unifesp, o levantamento feito pelo Conselho é bastante preocupante. “Não podemos tolerar esses níveis de precariedade na saúde mental. Os dados apurados pelo Cremesp demonstram que a implantação da principal política do Ministério da Saúde está deixando desassistido um número grande de pessoas e tratando apenas de 7% a 8% da população clínica que precisa de cuidados psiquiátricos”, diz.
Fiscalização
Os Caps são classificados pelo Ministério da Saúde em diferentes modalidades (I, II e III), em ordem crescente de porte, capacidade operacional, complexidade de atendimento e cobertura populacional. Existem também Caps para atendimento de crianças e adolescentes e unidades para tratamento de dependentes de álcool e outras drogas. O estudo do Cremesp avaliou todas as modalidades, localizadas na Capital e no Interior do Estado.
Na opinião de Luiz Alberto Hetem, vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), “o trabalho inédito e bem conduzido metodologicamente pelo Cremesp chega a conclusões inequívocas”. Segundo ele, há falhas graves no sistema, mesmo considerando critérios mínimos. “Trata-se de um dispositivo caro, de cobertura muito reduzida, com resolutividade inadequada e que facilita a cronificação dos casos e as complicações clínicas e sociais, aumentando o estigma”, afirma.
RELATÓRIOS DO CREMESP
O Cremesp fez questão de encaminhar os relatórios de fiscalização aos Caps visitados, individualmente, apontando a necessidade de correção dos problemas diagnosticados, conforme informou Luiz Alberto Bacheschi, presidente do Conselho. Algumas dessas falhas, inclusive, já podem ter sido sanadas pelas instituições. “O relatório aponta que há deficiências e elas devem ser corrigidas com o esforço do Poder Público e de todos os envolvidos com saúde mental”, aconselha Bacheschi.
O Cremesp encaminhará os resultados, conclusões e recomendações do estudo também ao Ministério Público, secretarias de saúde, Ministério da Saúde, programas governamentais de saúde mental, além de parlamentares e outras autoridades.
Outras deficiências registradas nos relatórios sobre os Caps
- 30% dos Caps III (de maior complexidade) não acataram a legislação no que se refere à “atenção contínua durante 24 horas diariamente, incluindo feriados e finais de semana”;
- 20% dos prontuários médicos apresentaram pelo menos uma falha, como letra ilegível, falta de projeto terapêutico individualizado para o paciente, falta de controle laboratorial para os psicotrópicos utilizados e ausência de formalização de concordância, por parte do paciente ou responsável, com o tratamento utilizado;
- 27,4% dos Caps não mantinham articulação com recursos comunitários para a reintegração profissional dos pacientes; e 29,8% não mostraram integração com outros serviços da comunidade;
- 45,2% dos centros avaliados não realizavam capacitação das equipes de profissionais de saúde de atenção básica; e 64,3% não faziam supervisão técnica para os membros dessas equipes.
A abertura dos Caps e o fechamento de leitos
Os últimos anos vêm se caracterizando por dois movimentos simultâneos: “por um lado, a construção de uma rede de atenção à saúde mental substitutiva ao modelo centrado na internação hospitalar e, por outro, a fiscalização e redução progressiva e programada dos leitos psiquiátricos existentes”, de acordo com o Ministério da Saúde.
Na prática, embora os números apontem nessa direção, ainda há uma distância enorme entre a reforma psiquiátrica proposta e o que se vê no cotidiano. Correntes divergentes polarizaram o debate, cerrando fileiras contra e a favor da reforma, dificultando a construção de um consenso. Em meio a essa disputa de teses – muitas vezes acadêmicas – pacientes e familiares são estimulados a se postarem contra ou favor da reforma, nem sempre em condições de avaliar o que é bom ou ruim em termos de tratamento. O debate necessário, que pudesse ensejar conciliação entre os polos conceituais, ou superação de um sobre outro, ou ainda de superação de ambos, em muitos momentos acabou dogmático, engessado e nada produtivo.
Um dos exemplos pode ser observado no fato de a maioria dos Caps não ter registro no Cremesp. Embora seja um serviço de saúde, e a lei obrigue sua inscrição no Conselho Regional de Medicina, tal requisito ainda é evitado como se significasse uma inclusão do Caps ao modelo hospitalocêntrico, repudiado pela reforma. Vale lembrar que o não cumprimento dessa lei – que determina a inscrição no Cremesp – também ocorre em outros equipamentos públicos de assistência à saúde, como unidades de prontoatendimento, prontos-socorros, unidades básicas de saúde e outros.
Sem essa inscrição, Caps e outros serviços ficam à margem do acompanhamento do Cremesp, uma instituição que cada vez mais contribui para a garantia da qualidade da saúde pública.
O Ministério da Saúde reconhece a lenta abertura de leitos em hospitais gerais, mas dizia que o número deveria “crescer consideravelmente” ao longo do ano de 2010. Também o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool (Pead), lançado pelo Ministério da Saúde, promete “apoio técnico e financeiro para a implantação de Serviços Hospitalares de Referência para a atenção aos usuários de álcool e outras drogas nos 100 maiores municípios do Brasil, capitais e municípios selecionados localizados em fronteira”. Pelo fato desse tipo de transtorno implicar diversas patologias de diferentes especialidades, é esse o perfil do paciente que mais se beneficia com a internação em hospitais gerais. Mesmo que ainda haja estigma e resistência por parte de profissionais e outros pacientes, especialmente com relação a usuários de crack – o que ocorre até mesmo em hospitais de referência e universitários.
De acordo com o Ministério da Saúde, mais do que simplesmente fechar leitos ou hospitais psiquiátricos, o objetivo tem sido transferir leitos das grandes instituições para outras menores, justamente uma das importantes propostas da reforma. Com o Pnash/Psiquiatria (Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares/Psiquiatria) e o PRH (Programa de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica), o perfil dos hospitais psiquiátricos vem mudando.
Segundo o Ministério, quase 46% dos leitos estão hoje situados em hospitais psiquiátricos de pequeno porte – em 2002, essa taxa era de apenas 24%, graças ao aumento do número de instituições de melhor desempenho e menor porte, sem a criação de novos leitos. Ao mesmo tempo, caiu o número de leitos em macro-hospitais – que significavam quase 30% dos leitos em 2002. Hoje, cerca de 14,5% dos leitos ainda encontram-se em hospitais com mais de 400 leitos. No entanto, estima-se que 30% de todos os leitos psiquiátricos do país sejam de longa internação, isto é, leitos ocupados por “moradores”, o que tende a acontecer em grandes hospitais.
A proposta e o crescimento dos Caps
Os Caps eram 148 no Brasil, em 1998, e chegaram a 1467, em 2009. São Paulo conta com 230 centros, o maior número entre as unidades da federação. Quando se traça uma linha histórica de 2003 a 2009, nota-se que o número de Caps mais do que triplicou, passando de 424, ao final de 2002, para 1467, em 2009.
Para melhor entender esse crescimento, o Ministério da Saúde utiliza o indicador de Caps por 100.000 habitantes, que leva em conta a população do país e de cada Estado. O número de Caps por 100 mil habitantes passou de 0,21, em 2002, para 0,60, em 2009. Considerando esses parâmetros, e ainda segundo os dados oficiais, a cobertura populacional em saúde mental passou de 21%, em 2002, para 60%, em outubro de 2009.