Estratégias da indústria farmacêutica
Por: Ray Moynihan & Alain Wasmes
7 de agosto de 2006
As estratégias da indústria farmacêutica para multiplicar lucros
espalhando o medo e transformando qualquer problema banal de saúde numa "síndrome"
que exige tratamento
Ray Moynihan, Alain Wasmes
Há cerca de trinta anos, o dirigente de uma das maiores empresas
farmacêuticas do mundo fez declarações muito claras. Na época, perto da
aposentadoria, o dinâmico diretor da Merck, Henry Gadsden, revelou à
revista
Fortune seu desespero por ver o mercado potencial de sua empresa
confinado
somente às doenças. Explicando preferiria ver a Merck transformada numa
espécie de Wringley´s - fabricante e distribuidor de gomas de mascar -,
Gadsden declarou que sonhava, havia muito tempo, produzir medicamentos
destinados às... pessoas saudáveis. Porque, assim, a Merck teria a
possibilidade de "vender para todo mundo". Três décadas depois, o
sonho
entusiasta de Gadsden tornou-se realidade.
As estratégias de marketing das maiores empresas farmacêuticas almejam
agora
e de maneira agressiva, as pessoas saudáveis. Os altos e baixos da
vida
diária tornaram-se problemas mentais. Queixas totalmente comuns são
transformadas em síndromes de pânico. Pessoas normais são, cada vez
mais
pessoas, transformadas em doentes. Em meio a campanhas de promoção, a
indústria farmacêutica, que movimenta cerca de 500 bilhões dólares por
ano,
explora os nossos mais profundos medos da morte, da decadência física e
da
doença - mudando assim literalmente o que significa ser humano.
Recompensados com toda razão quando salvam vidas humanas e reduzem os
sofrimentos, os gigantes farmacêuticos não se contentam mais em vender
para
aqueles que precisam. Pela pura e simples razão que, como bem sabe Wall
Street, dá muito lucro dizer às pessoas saudáveis que estão doentes.
A
fabricação das "síndromes"
A maioria de habitantes dos países desenvolvidos desfruta de vidas mais
longas, mais saudáveis e mais dinâmicas que as de seus ancestrais. Mas
o
rolo compressor das campanhas publicitárias, e das campanhas de
sensibilização diretamente conduzidas, transforma as pessoas saudáveis
preocupadas com a saúde em doentes preocupados. Problemas menores são
descritos como muitas síndomes graves, de tal modo que a timidez
torna-se um
"problema de ansiedade social", e a tensão pré-menstrual, uma doença
mental
denominada "problema disfórico pré-menstrual". O simples fato de ser um
sujeito "predisposto" a desenvolver uma patologia torna-se uma doença
em si.
O epicentro desse tipo de vendas situa-se nos Estados Unidos, abrigo de
inúmeras multinacionais famacêuticas. Com menos de 5% da população
mundial,
esse país já representa cerca de 50% do mercado de medicamentos. As
despesas
com a saúde
continuam a subir mais do que em qualquer outro lugar do
mundo.
Cresceram quase 100% em seis anos - e isso não só porque os preços dos
medicamentos registram altas drásticas, mas também porque os médicos
começaram a prescrever cada vez mais.
De seu escritório situado no centro de Manhattan, Vince Parry
representa o
que há de melhor no marketing mundial. Especialista em publicidade, ele
se
dedica agora à mais sofisticada forma de venda de medicamentos:
dedica-se,
junto com as empresas farmacêuticas, a criar novas doenças. Em um
artigo
impressionante intitulado "A arte de catalogar um estado de saúde",
Parry
revelou recentemente os artifícios utilizados por essas empresas para
"favorecer a criação" dos problemas médicos [1]. Às vezes, trata-se de
um
estado de saúde pouco conhecido que ganha uma atenção renovada; às
vezes,
redefine-se uma doença conhecida há muito tempo, dando-lhe um novo
nome;
e
outras vezes cria-se, do nada, uma nova "disfunção". Entre as
preferidas de
Parry encontram-se a disfunção erétil, o problema da falta de atenção
entre
os adultos e a síndrome disfórica pré-menstrual - uma síndrome tão
controvertida, que os pesquisadores avaliam que nem existe.
Médicos orientados por marqueteiros
Com uma rara franqueza, Perry explica a maneira como as empresas
farmacêuticas não só catalogam e definem seus produtos com sucesso,
tais
como o Prozac ou o Viagra, mas definem e catalogam também as condições
que
criam o mercado para esses medicamentos.
Sob a liderança de marqueteiros da indústria farmacêutica, médicos
especialistas e gurus como Perry sentam-se em volta de uma mesa para
"criar
novas idéias sobre doenças e estados de saúde". O objetivo, diz ele, é
fazer
com que os clientes das empresas disponham, no mundo inteiro, "de uma
nova
maneira de pensar nessas coisas". O objetivo é,
sempre, estabelecer uma
ligação entre o estado de saúde e o medicamento, de maneira a otimizar
as
vendas.
Para muitos, a idéia segundo a qual as multinacionais do setor ajudam a
criar novas doenças parecerá estranha, mas ela é moeda corrente no meio
da
indústria. Destinado a seus diretores, um relatório recente de Business
Insight mostrou que a capacidade de "criar mercados de novas doenças"
traduz-se em vendas que chegam a bilhões de dólares. Uma das
estratégias de
melhor resultado, segundo esse relatório, consiste em mudar a maneira
como
as pessoas vêem suas disfunções sem gravidade. Elas devem ser
"convencidas"
de que "problemas até hoje aceitos no máximo como uma indisposição" são
"dignos de uma intervenção médica". Comemorando o sucesso do
desenvolvimento
de mercados lucrativos ligados a novos problemas da saúde, o relatório
revelou grande otimismo em relação ao futuro financeiro da
indústria
farmacêutica: "Os próximos anos evidenciarão, de maneira privilegiada,
a
criação de doenças patrocinadas pela empresa".
Dado o grande leque de disfunções possíveis, certamente é difícil
traçar uma
linha claramente definida entre as pessoas saudáveis e as doentes. As
fronteiras que separam o "normal" do "anormal" são freqüentemente muito
elásticas; elas podem variar drasticamente de um país para outro e
evoluir
ao longo do tempo. Mas o que se vê nitidamente é que, quanto mais se
amplia
o campo da definição de uma patologia, mais essa última atinge doentes
em
potencial, e mais vasto é o mercado para os fabricantes de pílulas e de
cápsulas.
Em certas circunstâncias, os especialistas que dão as receitas são
retribuídos pela indústria farmacêutica, cujo enriquecimento está
ligado à
forma como as prescrições de tratamentos forem feitas. Segundo esses
especialistas, 90% dos norte-americanos idosos sofrem
de um problema
denominado "hipertensão arterial"; praticamente quase metade das
norte-americanas são afetadas por uma disfunção sexual batizada FSD
(disfunção sexual feminina); e mais de 40 milhões de norte-americanos
deveriam ser acompanhados devido à sua taxa de colesterol alta. Com a
ajuda
dos meios de comunicação em busca de grandes manchetes, a última
disfunção é
constantemente anunciada como presente em grande parte da população:
grave,
mas sobretudo tratável, graças aos medicamentos. As vias alternativas
para
compreender e tratar dos problemas de saúde, ou para reduzir o número
estimado de doentes, são sempre relegadas ao último plano, para
satisfazer
uma promoção frenética de medicamentos.
Quanto mais alienados, mais consumistas
A remuneração dos especialistas pela indústria não significa
necessariamente
tráfico de influências. Mas, aos olhos de um grande número de
observadores,
médicos e
indústria farmacêutica mantêm laços extremamente estreitos.
As definições das doenças são ampliadas, mas as causas dessas pretensas
disfunções são, ao contrário, descritas da forma mais sumária possível.
No
universo desse tipo de marketing, um problema maior de saúde, tal como
as
doenças cardiovasculares, pode ser considerado pelo foco estreito da
taxa de
colesterol ou da tensão arterial de uma pessoa. A prevenção das
fraturas da
bacia em idosos confunde-se com a obsessão pela densidade óssea das
mulheres
de meia-idade com boa saúde. A tristeza pessoal resulta de um
desequilíbrio
químico da serotonina no célebro.
O fato de se concentrar em uma parte faz perder de vista as questões
mais
importantes, às vezes em prejuízo dos indivíduos e da comunidade. Por
exemplo: se o objetivo é a melhora da saúde, alguns dos milhões
investidos
em caros medicamentos para baixar o colesterol em pessoas saudáveis,
podem
ser utilizados, de modo mais eficaz, em campanhas contra o tabagismo,
ou
para promover a atividade física e melhorar o equilíbrio alimentar.
A venda de doenças é feita de acordo com várias técnicas de marketing,
mas a
mais difundida é a do medo. Para vender às mulheres o hormônio de
reposição
no período da menopausa, brande-se o medo da crise cardíaca. Para
vender aos
pais a idéia segundo a qual a menor depressão requer um tratamento
pesado,
alardeia-se o suicídio de jovens. Para vender os medicamentos para
baixar o
colesterol, fala-se da morte prematura. E, no entanto, ironicamente, os
próprios medicamentos que são objeto de publicidade exacerbada às vezes
causam os problemas que deveriam evitar.
O tratamento de reposição hormonal (THS) aumenta o risco de crise
cardíaca
entre as mulheres; os antidepressivos aparentemente aumentam o risco de
pensamento suicida entre os jovens. Pelo menos, um dos
famosos
medicamentos
para baixar o colesterol foi retirado do mercado porque havia causado a
morte de "pacientes". Em um dos casos mais graves, o medicamento
considerado
bom para tratar problemas intestinais banais causou tamanha constipação
que
os pacientes morreram. No entanto, neste e em outros casos, as
autoridades
nacionais de regulação parecem mais interessadas em proteger os lucros
das
empresas farmacêuticas do que a saúde pública.
A "medicalização" interesseira da vida
A flexibilização da regulação da publicidade no final dos anos 1990,
nos
Estados Unidos, traduziu-se em um avanço sem precedentes do marketing
farmacêutico dirigido a "toda e qualquer pessoa do mundo". O público
foi
submetido, a partir de então, a uma média de dez ou mais mensagens
publicitárias por dia. O lobby farmacêutico gostaria de impor o mesmo
tipo
de desregulamentação em outros lugares.
Há mais de trinta anos, um livre
pensador de nome Ivan Illich deu o
sinal de
alerta, afirmando que a expansão do establishment médico estava prestes
a
"medicalizar" a própria vida, minando a capacidade das pessoas
enfrentarem a
realidade do sofrimento e da morte, e transformando um enorme número de
cidadãos comuns em doentes. Ele criticava o sistema médico, "que
pretende
ter autoridade sobre as pessoas que ainda não estão doentes, sobre as
pessoas de quem não se pode racionalmente esperar a cura, sobre as
pessoas
para quem os remédios receitados pelos médicos se revelam no mínimo tão
eficazes quanto os oferecidos pelos tios e tias [2] ".
Mais recentemente, Lynn Payer, uma redatora médica, descreveu um
processo
que denominou "a venda de doenças": ou seja, o modo como os médicos e
as
empresas farmacêuticas ampliam sem necessidade as definições das
doenças, de
modo a receber mais pacientes e comercializar mais medicamentos [3].
Esses
textos tornaram-se cada vez mais pertinentes, à medida que aumenta o
rugido
do marketing e que se consolidas as garras das multinacionais sobre o
sistema de saúde.
(Tradução: Wanda Caldeira Brant) wbrant@globo.com
Bibliografia complementar:
* A revista médica PLoS Medecine traz, em seu número de abril de 2006,
um
importante dossiê sobre "A produção de doenças" -
http://medicineplosjournals.org/
* Na França, as revistas Pratiques (dirigida ao grande público) e
Prescrire
(destinada aos médicos) avaliam os medicamentos e trazem um olhar
crítico
sobre a definição das doenças.
*Jörg Blech, Les inventeurs de maladies. Manoeuvres et manipulations de
l´industrie pharmaceutique, Arles, Actes Sud, 2005.
* Philippe Pignarre,
Comment la dépression est devenue une épidémie,
Paris,
Hachette-Littérature, col. Pluriel, 2003.