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SÃO PAULO - A genialidade se esconde nas entrelinhas da irreverência. É o que permeia a obra Péntiti! ao mostrar algumas passagens da vida e obra de Wolfgang Amadeus Mozart. Lançado na última semana pela editora Pixel (54 páginas, R$ 59,90), o livro foi ilustrado pelo desenhista italiano Milo Manara e tem textos do musicólogo austríaco Rudolph Angermüller. Se por um lado Angermüller descreve preciosidades pouco conhecidas sobre Mozart, de outro Manara dá cores à intensidade da vida, obra e personalidade do compositor mais famoso da história.
Péntiti! enfoca três das principais óperas de Mozart, aquelas em que fez mais sucesso na corte austríaca e entre as mais controversas de seu tempo. Bodas de Fígaro, Don Giovani e Cosí Fan Tutte, encenadas sob a batuta de Mozart entre 1786 e 1790, são peças em que a sátira se oculta sob a formalidade da música erudita, o que é destacado por Angermüller e Manara. Este, aliás, é mais conhecido como desenhista de quadrinhos eróticos. No entanto Péntiti! não é uma história em quadrinhos.
"O texto do livro é pesado. Eu acho um texto difícil, temático. Além disso não temos uma tradição operística", diz Francisco Assumpção Jr., professor livre-docente da USP e autor de Psicologia e Histórias em Quadrinhos. "Se você for ver, pouca gente se dispõe a ver ópera. Fora que a tradição operística brasileira é italiana. Apesar dos libretos terem sido escritos em italiano, as obras são austríacas." A princípio, a obra de Manara e Angermüller é voltada para iniciados, "para um público extremamente erudito", resume Assumpção. O que necessariamente não significa uma desvantagem.
Milo Manara é o autor de uma série de obras em que erotismo é o foco de sua narração. Sem resvalar na pornografia, a sexualidade na obra do desenhista serve como canal da percepção de uma realidade mais ampla. Teve como colaborador Frederico Fellini em Viaggio a Tulum e Il Viaggio di G. Mastrona detto Fernet. Além de Fellini, Manara colaborou com Pedro Almodóvar e Luc Besson. Nos últimos anos, o italiano tem realizado outra série biográfica sobre Rodrigo Bórgia, o papa Alexandre VI (1492-1503), escrita com Alejandro Jodorowsky. Os dois primeiros volumes já foram lançados no Brasil pela Conrad Editora (Borgia, Vol.1 - Sangue para o Papa, 68 páginas, R$ 39,00 ; e Borgia Vol.2 - O Poder e o Incesto, 68 páginas., R$ 39,00).
"Dá a impressão de que Manara estava ouvindo Mozart quando desenhou. Seu erotismo aqui é light, contido", diz Assumpção. Para o professor da USP, entre Manara e Mozart há muita sintonia. Obviamente faltam adjetivos para descrever Mozart. Ele foi um compositor extremamente prolífico em seu tempo. Com obras feitas sob encomenda da corte européia do século 18, o talento de Mozart estava em usar a estrutura formal da música para dar vazão a experiências emocionais das mais elementares, por isso mesmo tão intensas. O mesmo acontece com Manara.
Em Péntiti! não há o erotismo mais "literal" de Manara, "com exceção de duas pranchas que lembram o resto de sua obra", diz Assumpção. "Você o reconhece pelo traço as mulheres. Elas lembram as divas italianas, a Mônica Belucci, a Cláudia Cardinale nos bons tempos, a Sophia Loren dos bons tempos." De resto, Manara obedece ao mesmo sentido artístico de Mozart, um academicismo "olímpico", clássico.
Simplesmente dizer que Mozart foi um gênio é, paradoxalmente, uma injustiça ao homem Mozart. O sociólogo alemão Nobert Elias, em seu livro Mozart, Sociologia de um Gênio, diz que é necessário entender as motivações do artesão Mozart. Tão melancólica quanto brilhante, a vida do compositor pode surpreender quem o imagina como um bufão jocoso que desdenhava da aristocracia austríaca.
Johannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart nasceu em Salzburgo, na Áustria, em 1756, e morreu com 35 anos em 1791. Segundo o co-autor de Péntiti!, Mozart só usou o nome Amadeus em raras ocasiões. Seu pai, Leopold, era o regente-substituto da corte do arcebispo de Salzburgo, governante do pequeno Estado. Desde cedo Leopold forçou uma disciplina espartana ao filho, que aos sete anos já compunha as próprias obras e era exposto como um animal exótico diante de uma platéia rococó.
Um burguês funcionário da aristocracia (abaixo dela, portanto), Leopold esperava que o filho seguisse seus passos e fizesse uma carreira segura como regente de alguma corte maior do que Salzburgo, talvez em Munique ou Paris. Algo incômodo para o jovem Mozart, que consciente de seu talento, desejava ter total liberdade criativa. Ele entendia a música. Usava-a como a maioria das pessoas usa a linguagem. E ele tinha muito a dizer. Especialmente sobre si mesmo.
Sua vida é o testemunho de alguém extremamente humano, às voltas com as condições comuns aos dias de hoje. Sua mulher, Constance, só soube valorizar o marido na medida de seu sucesso como compositor. No fim da vida, desprezado pelo público de Viena, definhou em dúvidas sobre o amor da mulher e amigos. Embora fosse um grande bufão, irreverente e mulherengo, amava sinceramente a mulher. Mais ainda, sua vida é marcada por uma extrema carência. E de alguma forma era o que vinha à tona em sua música.
Não se pode esquecer que Mozart viveu às vésperas da Revolução Francesa. Mesmo que a Áustria só fosse influenciada diretamente pela revolução no período napoleônico (1799-1815), no tempo de Mozart também já se anunciava o espírito de crítica que iria abalar toda base do poder aristocrático da Europa. Sua vida adulta foi marcada pela busca constante de aprovação tanto do pai quanto dos seus patrões, a nobreza. Uma de suas primeiras óperas, Idomeneo, de 1781, é a excelência formal da música da época. Feita para o bispo-rei de Salzburgo, Mozart reproduz o estilo tradicional cortesão cujo libreto, o texto que compõe a música, louvava "adequadamente" o príncipe por sua generosidade. Para Mozart, isso era a castração de sua criatividade.
A partir de Idomeneo, Mozart passaria a produzir peças de forma tão independente quanto possível em Viena. A ópera, na época, era o máximo da produção artística. Sua apresentação só era garantida por subscrição. Um risco calculado, portanto. As Bodas de Fígaro, descrita por Manara e Angermüller, foi uma delas. No entanto foi considerada de conteúdo suspeito sob a visão absolutista. Narra a história de Figaro às vésperas de seu casamento. Seu senhor, o conde de Almaviva, corteja a noiva do servo abertamente. O mote da obra não é simplesmente o abuso de poder que a nobreza representava, mas as relações pessoais entre os indivíduos, fidelidade e amizade postas a prova.
A sensibilidade política de Mozart era no mínimo rasteira. Ele deixava esse lado por conta de seu libretista e amigo, Lorenzo Da Ponte. Mozart, por outro lado, estava mais preocupado em tocar a sensibilidade de seu público, sentimentos contraditórios como os seus próprios. Se ao mesmo tempo desprezava um público mesquinho e arrogante, buscava sua aceitação. Basta dizer que a arte erudita do século 18, assim como seus maneirismos e costumes, serviam mais para gerar uma identidade de grupo, ansioso por atestar seu poder, do que uma real compreensão e admiração sobre a obra de arte em si.
Manara e Angermüller conseguem chamar a atenção justamente sobre isso. Don Giovanni, versão italiana de Don Juan, e Cosí Fan Tutte seguem a mesma linha de As Bodas de Fígaro. À parte qualquer picuinha política atribuída às intenções Mozart, o que é importante é a maneira como expressou sua própria tensão.
As animalidades fantasiosas de Mozart encontravam um igual no seu público. Bobagem afirmar que ele foi um compositor "à frente de seu tempo". Foi simplesmente leal à sua personalidade satírica. A irreverência e o humor, bem colocados sob a forma de arte, assumem aí o sentido de uma fiel interpretação da realidade em suas contradições. O público de Viena não virou as costas para Mozart não porque não entendesse suas obras, mas talvez porque as obras os fizessem se sentir menores do que realmente eram. Se faltarem termos para definir genialidade, Pentíti! é um bom começo para tentar entendê-la.