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Por que milhões de pessoas dependem da Índia para obter medicamentos a preço acessível? Os medicamentos produzidos pelas fábricas da Índia estão entre os mais baratos do mundo. Isso acontece porque, até recentemente, o país não concedia patentes para medicamentos. A Índia é um dos poucos países em desenvolvimento com capacidade para produzir medicamentos essenciais de qualidade. Ao produzir versões genéricas mais baratas de medicamentos que são patenteados em outros países, a Índia se tornou uma fonte-chave de medicamentos essenciais acessíveis, como os anti-retrovirais usados no tratamento de HIV/Aids. Os medicamentos produzidos na Índia têm sido usados no mercado doméstico do país e também são importados por muitos países em desenvolvimento, que contam com a Índia para fornecer os medicamentos necessários para, por exemplo, os programas nacionais de tratamento de HIV/Aids. Mais da metade dos medicamentos atualmente usados no tratamento da Aids em países em desenvolvimento vem da Índia e estes medicamentos são usados para tratar mais de 80% dos 80 mil pacientes com Aids atendidos nos projetos de Médicos Sem Fronteiras.
Qual é a relação entre patentes e os medicamentos a preços acessíveis? Patentes concedem monopólios locais por certo período de tempo às empresas que as detém. Isso significa que uma empresa que detém a patente de um medicamento em um determinado país pode evitar que outras empresas produzam ou vendam o medicamento naquele país durante o tempo em que a patente tiver validade. De acordo com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), a patente poderá ter validade pelo tempo mínimo de 20 anos. A proteção patentária permite, portanto, que as empresas cobrem preços altos nos países onde elas detêm patentes, porque não há competidores no mercado. A concorrência entre produtores é a forma testada e garantida para fazer com que os preços caiam. A concorrência entre os produtores genéricos é o que ajudou a reduzir o preço do tratamento da Aids de US$ 10 mil por paciente por ano em 2000 para US$ 130 por paciente por ano hoje. Na ausência de patentes, vários produtores competem para ganhar fatias de mercado, fazendo com que os preços fiquem os mais baixos possíveis. Além disso, ter várias fontes ajuda a aumentar a disponibilidade dos medicamentos. A ausência de patentes na Índia também ajudou no desenvolvimento de medicamentos em dose fixa de tipo “três em um” e de fórmulas para crianças, entre outras coisas.
Por que a Índia concede patentes para medicamentos agora? Como integrante da Organização Mundial do Comércio, a Índia tem que seguir as regras de comércio estabelecidas pela OMC. Uma delas é o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, ou TRIPS (na sigla em inglês), que obriga os países integrantes da OMC a conceder patentes a produtos tecnológicos, incluindo os farmacêuticos. Para cumprir essa obrigação internacional, a Índia modificou sua lei de patentes em 2005 e começou a conceder patentes de medicamentos. Como resultado, se patentes são concedidas no país, os produtores de genéricos indianos não poderão mais produzir versões genéricas mais baratas desses medicamentos, o que vai ter um impacto não só dentro da Índia, mas também em outros países que importam genéricos indianos. Apenas alguns poucos novos medicamentos foram patenteados na Índia até hoje, mas isso certamente vai mudar no futuro. Atualmente, quase 10 mil pedidos de patentes de medicamentos estão aguardando exame na Índia. Se este país começar a conceder patentes como os países ricos o fazem – ou seja, conceder várias patentes por produto para cada pequena modificação, de forma rotineira – isso pode significar o fim dos medicamentos a preços acessíveis nos países em desenvolvimento.
Por que a Novartis entrou com a ação contra o governo da Índia? A Novartis entrou com um pedido de patente na Índia para o medicamento mesilato de imatinib, utilizado no tratamento de câncer, que a empresa comercializa com o nome Gleevec/Glivec em muitos países. O pedido de patente foi negado na Índia em janeiro de 2006 com a alegação de que o medicamento era uma nova formulação de outro produto antigo e, portanto, não era patentável segundo a lei indiana. Em outros países onde a Novartis obteve a patente, o Gleevec é vendido a US$ 2.600 por paciente por mês. Na Índia, a versão genérica do Gleevec é vendida por menos de US$ 200 por paciente por mês. A Novartis está tentando reverter a decisão sobre a patente para poder vender o Gleevec na Índia pelo mesmo preço praticado nos outros países. A Novartis também está tentando derrubar judicialmente a lei de patentes indiana para que as patentes sejam facilmente concebidas na Índia como acontece na maioria dos outros países.
Como é possível a Índia rejeitar a patente que é concedida em outros países? Não existe algo como uma patente internacional ou global. Os pedidos de patentes são examinados pelos escritórios de patentes de em cada país e cada um deles decide se um medicamento em particular deve ser patenteado ou não, com base nas regras locais. Felizmente, a Índia desenvolveu sua nova lei de patente de maneira que o número de patentes concedidas fosse o menor possível. Essa foi uma medida tomada para recompensar a inovação, que, na verdade, é o raciocínio inicial do sistema de concessão de patentes. A lei da Índia defende que as patentes só devem ser concedidas aos medicamentos que realmente são novos e inovadores. Isso significa que as companhias não deveriam obter patentes para medicamentos que não são realmente novos, como para combinações ou para fórmulas de medicamentos já existentes que sofreram pequenas alterações. Essa parte da lei foi especificamente formulada para prevenir uma prática comum feita pelas empresas, que é tentar conseguir patentes com base em aperfeiçoamentos insignificantes de medicamentos já existentes, para assim estender seu monopólio sobre os medicamentos o máximo possível. A Novartis está questionando judicialmente essa parte da lei indiana, sob a alegação de que seria uma violação das regras da OMC.
A Índia tem o direito de ter essa lei de patente particular? Em 2001, todos os países integrantes da OMC assinaram a Declaração de Doha que determina que "o Acordo TRIPS pode e deveria ser interpretado e implementado de maneira a apoiar o direito de todos os integrantes da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, promover o acesso a medicamentos para todos". A mesma declaração permite que países tomem medidas para proteger a saúde pública. A lei de patentes da Índia tem como base essa declaração. A Índia escolheu desenvolver uma lei de patente que contenha uma salvaguarda-chave para a saúde pública, que significa que apenas medicamentos realmente novos ou inovadores devem ser patenteados.
O que vai acontecer se a Novartis ganhar o caso? Se a Novartis ganhar o caso e conseguir que a lei indiana mude para ficar como as leis de patentes dos países ricos, as patentes serão concedidas na Índia tão amplamente como ocorre nos países ricos. Isso significa que menos e possivelmente nenhuma versão genérica de novos fármacos poderá ser produzida por fábricas indianas durante o período de validade da patente, calculado em pelo menos 20 anos. Assim, a Índia não vai poder mais fornecer à grande parte do mundo em desenvolvimento medicamentos essenciais baratos.
Os medicamentos para HIV/Aids são um bom exemplo. Apesar de os medicamentos mais antigos para tratar o HIV/Aids terem ficado mais baratos graças à concorrência genérica, a disponibilidade de medicamentos mais novos e eficazes é crucial. Isso porque quando as pessoas tornam-se resistentes à combinação de medicamentos que elas tomam por determinado tempo inevitavelmente precisam mudar para regime de medicamentos de 'segunda linha'. Dados coletados no projeto de MSF em Khayelitsha, África do Sul, ilustram essa necessidade crescente: 17,4% das pessoas em tratamento lá por cinco anos tiveram que mudar para uma nova combinação de medicamentos. No entanto, ainda hoje, a maior parte dos novos medicamentos continuam a ser disponibilizados apenas pelos produtores de marca original que detêm as patentes, fazendo com que os preços permaneçam altos e a disponibilidade baixa. É por esse motivo que os fabricantes indianos têm se mostrado relutantes em começar a produzir esses medicamentos mais novos, uma vez que temem que sua produção tenha que ser interrompida caso as patentes para esses medicamentos sejam concedidas na Índia. Por sua vez, isso fez com que os novos medicamentos para a Aids ficassem até 50 vezes mais caros do que os antigos.
Qual é o impacto para os pacientes no Brasil? Desde a introdução da lei de patentes no Brasil em 97, os preços dos medicamentos em situação de monopólio tem consumido cada vez mais o orçamento do Ministério da Saúde. O orçamento dos medicamentos ditos de alto custo cresce de forma exponencial em relação a outros medicamentos mais antigos. Se a India não puder mais produzir e vender medicamentos genéricos que promovam amplamente a concorrência no mercado internacional, todos os novos produtos envolvendo fármacos antigos estarão sujeitos a situação de monopólio podendo ocasionar repercussões negativas no Brasil e nos demais países em desenvolvimento. Medicamentos desenvolvidos no Brasil com matérias-primas importadas da Índia permitiram a sustentabilidade do Programa Brasileiro de Aids no que diz respeito a medicamentos de primeira linha (fora de proteção patentária). Este modelo não será mais possível se a Novartis ganhar o caso.
CRONOLOGIA – Algumas datas importantes sobre a Lei de Patentes da Índia e o Caso Novartis
1994/1995 – Criação da Organização Mundial do Comércio e a entrada em vigor do Acordo TRIPS, que confere o prazo de até 2005 para que os países em desenvolvimento comecem a conceder patentes para medicamentos.
2003- Novartis lança o Gleevec nos Estados Unidos pelo preço de US $2.600 por paciente por ano. As versões genéricas do Gleevec logo se tornam disponíveis na Índia por mesmo de $200 por paciente por mês.
Abril 2005 – Emenda da Lei de Patentes da Índia: os medicamentos podem agora ser patenteados na Índia. No entanto, a lei estipula que apenas reais inovações farmacêuticas serão protegidas por patentes. Seção 3(d) especifica que novas formas de substâncias conhecidas não merecem ser patenteadas.
Janeiro 2006 – O escritório de análise de patentes da Índia rejeita o pedido de patente da Novartis para o Gleevec, alegando que o medicamento é apenas uma nova formulação de uma substância conhecida.
Maio 2006 - Novartis recorre da decisão na Alta Corte da Índia. Novartis também entra com uma ação contra a Seção 3(d) da Lei de Patentes da Índia.
Setembro 2006 – Primeira audiência sobre o apelo e o processo. Nenhuma decisão é tomada e uma nova audiência é marcada.
29 Janeiro 2007 – Próxima audiência marcada na Alta Corte de Chennai. |