Daniel B. Nora; Irenio Gomes; Gibran El Ammar; Magda L. Nunes
16 de setembro de 2007
Síndrome de Hopkins no diagnóstico diferencial das paralisias flácidas na infância: aspectos clínicos e neurofisiológicos. Relato de caso
Hopkins' syndrome in the differential diagnosis of flaccid paralysis in children: clinical and neurophysiological features. Case report
Daniel B. NoraI; Irenio GomesII; Gibran El AmmarIII; Magda L. NunesIV
Serviço de
Neurologia do Hospital São Lucas (HSL) da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS - Brasil
INeurologista
infantil e neurofisiologista do HSL-PUCRS, Mestre em Medicina
IINeurologista e neurofisiologista do Hospital Mãe de Deus,
Doutor em Neurociências
IIIResidente de Neurologia do HSL-PUCRS
IVNeurologista infantil e neurofisiologista do HSL-PUCRS,
Professora adjunta de Neurologia e Pediatria da Faculdade de Medicina da PUCRS,
Doutora em Neurociências
RESUMO
INTRODUÇÃO: A síndrome de Hopkins (SH) é caracterizada por
monoplegia ou diplegia, decorrente de lesão no corno anterior da medula, que se
segue a um ataque agudo de asma, ocorre geralmente em crianças e sua etiologia
ainda não está definida. Há 34 casos descritos no mundo, sendo este o primeiro
relato na América do Sul e durante o primeiro ano de vida.
CASO:
Criança internada aos 4 meses de idade com quadro de sibilância e insuficiência
respiratória. Cerca de 3 dias após melhora do quadro respiratório, observou-se
perda de força nos membros inferiores. Teve alta hospitalar com regressão do
quadro respiratório mantendo a paraparesia. Reinternada aos 9 meses de idade por
novo quadro de broncoespasmo, demonstrando paralisia flácida assimétrica
(E>D) e atrofia nos membros inferiores.
EXAME NEUROLÓGICO: força e
reflexos miotáticos normais nos membros superiores, arreflexia miotática nos
membros inferiores e sensibilidade preservada. Exames de líquor, ressonância
magnética de coluna lombossacra e potencial evocado somatossensitivo dos membros
inferiores: normais.
BIÓPSIA
MUSCULAR: Grupamento de fibras. A eletroneuromiografia demonstrou sinais de
lesão do neurônio motor do corno anterior da medula nos metâmeros lombossacros.
CONCLUSÃO: A Síndrome de Hopkins, apesar de rara, deve ser
lembrada no diagnóstico diferencial de paralisias flácidas, quando houver
concomitância com asma.
Palavras-chave: síndrome de Hopkins, amiotrofia asmática, paralisia semelhante a poliomielite, eletroneuromiografia, asma.
ABSTRACT
INTRODUCTION: Hopkins syndrome is a motor neuron disease which
leads to a flaccid paralysis affecting one or more limbs resembling
poliomyelites. It follows an asthmatic attack and the prognosis is poor. All the
34 related cases occured after 13 months of age and there is no report in South
America. Our objective is to describe a case of Hopkins Syndrome in Brazil
affecting a patient younger than 1 year.
CASE: Male 4
months-old infant, started presenting wheezing that turned into respiratory
failure which required mecanical ventilation. Three days later he initiated with
loss of strength in the lower limbs (LL). The patient was dismissed from
hospital better of his respiratory complains but still paraparetic. Five months
later, the patient returned with another episode of severe bronchospasm. At that
time, he presented with flaccid paralysis, arreflexia and atrophy of the LL.
There were no upper limbs and sensory abnormalities. The patient undergone to
lumbar puncture, spinal MRI and SEPs which were all normal.
MUSCLE BIOPSY:
type grouping. EMG and NCS were in keeping with motor neuron disease affecting
just the lumbosacral region.
CONCLUSION:
Hopkins syndrome should be included in the differential diagnosis of any flaccid
paralysis when it is associated with an asthma attack..
Keywords: Hopkins' syndrome, asthmatic amyotrophy, poliomielite-like paralysis, electromyography and nerve conduction studies, asthma.
A síndrome de Hopkins (SH), ou paralisia semelhante-a-poliomielite associada a asma, é caracterizada por doença no neurônio motor do corno anterior da medula, que se segue a ataque agudo de asma. Ocorre geralmente em crianças e se apresenta como monoplegia ou diplegia com evolução desfavorável1-4. O relato inicial desta condição foi feito por Hopkins em 1974, em crianças australianas. Naquele trabalho, o autor descreve 10 pacientes com paralisia flácida assimétrica em uma ou duas extremidades, com início cerca de 3 dias após um ataque de asma. Todos os casos haviam recebido imunização para poliomielite e utilizado corticoterapia para tratamento do broncoespasmo1. Desde então, foram descritos 34 pacientes, incluindo a série inicial, havendo apenas dois casos em adultos e nenhum abaixo de 13 meses de idade, não tendo sido encontrada descrição na América do Sul ou na África. Após crise grave de asma necessitando ventilação mecânica, os pacientes desenvolvem paralisia flácida de uma ou mais extremidades, sem comprometimento sensitivo ou vegetativo. A fraqueza muscular inicia-se quando o episódio de broncoespasmo está em remissão, evoluindo para plegia dos segmentos afetados em horas a dias, sem melhora clínica posterior. Esta apresentação clínica lembra poliomielite, exceto por quase todos os pacientes descritos terem recebido imunização prévia, pela estreita associação com o broncoespasmo grave e pela maior abrangência etária5. A etiologia é incerta até o momento, sendo sugerida a participação de: possíveis vírus neurotrópicos, imunossupressão por corticosteróides, drogas neurotóxicas usadas na asma, como xantinas, e agentes bloqueadores da junção neuro-muscular2,3.
O objetivo deste estudo é descrever o caso de um paciente com síndrome de Hopkins no Brasil, cuja apresentação ocorreu no primeiro ano de vida, alertando para esta nosologia entre as causas de paralisia flácida na infância. Associados a revisão da literatura, buscamos discutir aspectos etiopatôgenicos, a apresentação neurofisiológica e o diagnóstico diferencial desta condição.
CASO
Paciente masculino foi internado aos 4 meses de idade com quadro de sibilância, dificuldade respiratória e febre de até 38oC, com evolução em 2 dias para insuficiência respiratória necessitando de ventilação mecânica. Cerca de 3 dias após melhora do quadro respiratório, foi notada paralisia flácida nos membros inferiores (MsIs), mais intensa no lado esquerdo, sem nenhuma alteração de sensibilidade e com movimentação normal nos membros superiores (MsSs). Foi feita análise do líquido cefalorraquidiano (LCR) que não mostrou pleocitose ou aumento de proteínas, e pesquisa molecular de poliovírus nas fezes, que foi negativa. O paciente foi medicado com salbutamol inalatório e endovenoso, corticoterapia e antibioticoterapia, tendo obtido alta hospitalar sete dias após, com recuperação completa do quadro de sibilância e manutenção da paraparesia flácida. Foi encaminhado para fisioterapia motora, não tendo sido estabelecida a causa da paralisia.
Havia referência a imunização completa até então, incluindo vacina para poliomielite aos 2 meses de idade. Nasceu de parto normal a termo, sem complicações pré-natais ou sofrimento durante o parto (Apgar 9 e 10). Apresentou desenvolvimento neuropsicomotor normal até então, tendo sustento cefálico aos 2 meses, sentando com apoio aos 4 meses, com boa movimentação e força dos 4 membros. Não apresentava outras doenças, exceto a asma. A mãe tinha sequelas motoras nos membros inferiores por quadro diagnosticado como poliomielite contraída na infância, necessitando cadeira de rodas para locomoção. A mesma relata não ter sido vacinada para poliomielite, nega história de asma e apresenta eletroneuromiografia, realizada quando adulta, compatível com poliomielite. Não havia história familiar de outras doenças neuromusculares.
A criança foi internada posteriormente em outro hospital, aos 9 meses de idade, com novo quadro de broncoespasmo grave e persistência da paraplegia. Entre as duas internações apresentou quatro episódios de broncoespasmo, sendo diagnosticada asma. O exame neurológico, nesta internação, demonstrou: força e reflexos miotáticos normais nos MsSs; fraqueza assimétrica, mais acentuada à esquerda; flacidez muscular nos MsIs; arreflexia miotática nos aquileus, patelares e adutores das coxas; reflexos de preensão plantar abolidos; ausência de resposta nos reflexos cutâneo-plantares; sensibilidade dolorosa preservada, com choro após estímulo em ambas as pernas. Não havia evidência de nível sensitivo. Foi realizada investigação com estudo do LCR, exames de sangue (hemograma, eletrólitos, CPK, aldolase, TGO, TGP, LDH, uréia, creatinina, anticorpos para CMV, herpes, EBV e HIV), ressonância magnética (RM) de coluna lombossacra e potencial evocado somatossensitivo dos membros inferiores, que não evidenciaram anormalidades. Foi realizada biópsia no músculo quadríceps esquerdo, que demonstrou anormalidades compatíveis com reinervação crônica, com grupamento de fibras, sugestivas de lesão do neurônio motor. A eletroneuromiografia, descrita nas tabelas 1, 2 e 3, mostrou alterações indicativas de lesão do neurônio motor no corno anterior da medula, nos metâmeros abaixo de L2-L3, bilateralmente, mais intensas à esquerda. Foi realizada estimulação repetitiva do nervo ulnar esquerdo com baixa e alta frequência, que foi normal. Na figura 1 são vistos os potenciais de unidade motora encontrados ao exame de agulha neste paciente.
DISCUSSÃO
A síndrome de Hopkins é condição rara, sendo este o único relato no mundo antes de um ano de vida e o primeiro caso na América do Sul. Há apenas uma descrição de casos em adultos com esta síndrome: 2 pacientes do Japão, com idades de 22 e 73 anos4. Naquele trabalho, porém, são descritos outros achados que não correspondem à descrição clássica da síndrome, como envolvimento do trato córtico-espinhal, presença de síndrome sensitiva e melhora clínica. Acreditamos, portanto, que possa haver outra doença relacionada aos pacientes adultos descritos e que a SH acometa somente crianças ou adolescentes, podendo atingir lactentes no primeiro ano de vida.
A paralisia flácida de início súbito e assimétrico, logo após quadro grave de asma, em paciente previamente imunizado para poliomielite e sem alterações de sensibilidade, sugerem o comprometimento do neurônio motor do corno anterior da medula, como o descrito na SH1-3,5-7. Doença muscular não generalizada pode ocorrer em pacientes críticos, sendo esta de origem necrotizante3. O referido paciente, no entanto, apresentou níveis séricos de enzimas musculares normais e a biópsia de músculo evidenciou apenas padrão de comprometimento muscular secundário a desnervação, afastando miopatia. Por outro lado, no caso aqui descrito, a estimulação repetitiva foi normal no membro superior. Associado a este fato, o comprometimento assimétrico e apenas de membros inferiores com evolução para plegia definitiva e atrofia tornam pouco provável tratar-se de doença da junção neuro-muscular, tanto congênita quanto associada a pacientes gravemente enfermos5.
Quanto às polineuropatias, cabe ressaltar que, neste lactente, não foi identificado comprometimento sensitivo, clínico ou neurofisiológico. Juntamente com este achado, a ausência de bloqueios e a verificação de velocidades de condução normais, o estudo do LCR sem evidência de dissociação proteino-citológica e a evolução insatisfatória do déficit motor tornam pouco provável o diagnóstico de síndrome de Guillain-Barré. Mesmo as formas axonais ou puramente motoras são improváveis, já que o quadro foi assimétrico e sem ascensão para os membros superiores. Também o diagnóstico de polineuropatia crítica pode ser afastado pelo comprometimento assimétrico, apenas motor e só dos membros inferiores; além disso, nosso paciente não apresentou sepse ou falência de múltiplos órgãos e do quadro teve início apenas 3 dias após a insuficiência respiratória2,5.
Pensando em doença medular, podemos estabelecer que não há lesão dos funículos posteriores e laterais, pois não foram encontrados sinais piramidais, o paciente não apresentou retenção urinária e o potencial evocado somato-sensitivo dos membros inferiores foi normal. Além disso, não foram encontradas alterações à RM da coluna lombossacra.
Acreditamos que este paciente apresenta doença do corno anterior da medula, hipótese corroborada pelos achados eletroneuromiográficos. Nesta faixa etária, poderíamos pensar em amiotrofia espinhal tipo I, mas esta pode ser afastada do porque: o paciente teve desenvolvimento normal até os 4 meses; não apresentou quadro clínico de hipotonia generalizada e sim restrita aos membros inferiores e assimétrica, com reflexos miotáticos normais e força preservada nos membros superiores; não apresentou evolução compatível com aquele diagnóstico. Além disso, o paciente foi vacinado contra a poliomielite dois meses antes do aparecimento dos sintomas, não tendo nesta ocasião sinais de imunossupressão, o que sugere não se tratar de um quadro de poliomielite viral selvagem ou pós-vacinal. É importante considerar: que o paciente tinha LCR normal na fase aguda da doença, sem pleocitose; que a poliomielite é considerada erradicada em nosso país; e que uma doença decorrente da vacinação é extremamente rara e normalmente demonstra sintomatologia no primeiro mês após a vacina; que pesquisa de poliovírus nas fezes foi negativa.
A etiopatogenia da SH é ainda desconhecida. O ataque de asma, junto com o uso de corticóides, pode servir como gatilho para que vírus neurotrópicos invadam o corno anterior da medula, causando lesão em metâmeros específicos2,8. Kyllerman descreveu um caso de SH em menino de sete anos, no qual foi isolado Herpes vírus tipo I no LCR, durante a fase aguda da doença9. Têm sido identificados, também, enterovírus em pacientes com SH2. O poliovírus parece não ser o agente causal desta doença, já que os pacientes descritos até hoje haviam recebido imunização prévia e este vírus não foi identificado em nenhum dos casos2. Há ainda o relato de títulos altos de Mycoplasma pneumoniae em um paciente de três anos de idade10. Não está esclarecido um possível papel de hiperatividade do sistema imunológico e das drogas utilizadas durante a crise grave de asma no desenvolvimento da doença.
Em concordância com os estudos neurofisiológicos e com a evolução clínica, a RM da medula demonstra, apenas na fase aguda da doença, áreas de aumento de sinal nos metâmeros correspondentes às extremidades lesadas, uma provável lesão inflamatória de caráter transitório nestes locais8,11. Como já descrito, o nosso paciente não mostrou alterações na RM de coluna lombossacra, porém esta foi realizada cerca de cinco meses após o quadro agudo, o que concorda com a literatura, que demonstra normalização do exame de imagem 12 semanas após o início dos sintomas8. Não há ainda um tratamento definido para a SH, com a paralisia flácida sendo permanente em praticamente todos os pacientes. Há o relato de melhora numa paciente com o uso de imunoglobulina intravenosa12 e num paciente tratado com prednisolona oral na fase inicial da doença13.
Para finalizar, ressaltamos que, embora rara, a SH deve ser pensada e entrar no diagnóstico diferencial em crianças asmáticas que desenvolvam paralisia flácida durante ataque de broncoespasmo. A identificação de maior número de casos, que devem ser descritos, poderá na melhor definição desta entidade nosológica.
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Dr. Daniel Bocchese Nora - Rua São Manoel 1573 / 702 - 90620-110 Porto Alegre RS - Brasil. E-mail: dbnora@terra.com.br
Artigo original:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X2003000300033&lng=pt&nrm=iso