Ramiro Ronchetti; Eduardo Siaim Böhme; Ygor Arzeno Ferrão
24 de maio de 2010
A hipótese imunológica no Transtorno Obsessivo-Compulsivo: revisão de um subtipo (PANDAS) com manifestação na infância
The immunologic hipothesis in the obsessive compulsive disorder: revision of a subtype with childhood onset
La hipótesis inmunológica en el trastorno obsesivo compulsivo: revisión de un subgrupo con síntomas de inicio en la infancia
Ramiro RonchettiI; Eduardo Siaim BöhmeI; Ygor Arzeno FerrãoII
IAcadêmico de Medicina da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre
IIAluno de Doutorado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP); Médico do Hospital Psiquiátrico São Pedro
RESUMO
O presente estudo tem como objetivo revisar a literatura sobre um subgrupo do TOC, identificado inicialmente em 1998 por Swedo et al3, proposto como modelo para a hipótese imunológica. Denominado PANDAS (Pediatric Auto-imune Neuropsychiatric Disorder Associated with Streptoccocal Infecctions), caracteriza-se por desencadear sintomas atípicos do TOC, em crianças com história recente de infecção por Estreptococo B-hemolítico do Grupo A. Cinco critérios cardinais são apresentados como base do diagnóstico: 1) presença de TOC ou Transtornos de tique ou ambos; 2) início na infância, entre 3 anos de idade e período puberal; 3) curso do episódio caracterizado por início abrupto de sintomas ou exacerbação dramática de sintomas previamente controlados; 4) associação temporal entre exacerbação da sintomatologia e episódio de infecção por estreptococo B-hemolítico do grupo A e 5) associação com alterações neurológicas durante exacerbação da sintomatologia. Baseando-se no modelo já conhecido da Coréia de Sydenham, discute-se atualmente a fisiopatologia da doença, que aponta para uma reação imunológica cruzada contra o tecido do hospedeiro. Discute-se, ainda, a herança genética dos indivíduos suscetíveis, bem como evidências laboratoriais e de neuroimagem nos pacientes acometidos por PANDAS. Com relação ao tratamento, enfatiza-se a importância de outras alternativas, além da farmacoterapia, que possam interferir na reação auto-imune, considerada responsável pela evolução da doença.
A importância em reconhecer esse modelo imunológico do TOC reside no fato de permitir a psiquiatras e clínicos gerais a identificação e prevenção de uma doença neuropsiquiátrica através de intervenções profiláticas em variáveis ambientais.
Descritores: PANDAS, Coréia de Sydenham, TOC e distúrbio neurológico pós-estreptocócico.
ABSTRACT
This review intends to compile the current literature about an OCD subtype, initially identified in 1998 by Swedo et al 3, and proposed as a model for the immunologic hypothesis of OCD. Denominated PANDAS (Pediatric Auto-imune Neuropsychiatric Disorder Associated with Streptoccocal Infecctions), it's distinguished by atypical OCD symptoms in children with recent history of streptoccocal infection. The five main criteria for diagnosis are: 1) presence of OCD or a tic disorder or both, 2) pediatric onset, with symptoms beginning between the age of 3 years and puberty, 3) episodic course characterized by the abrupt onset of symptoms or by dramatic symptom exacerbations, 4) temporal association between symptom exacerbation and streptoccocal infection, and 5) association with neurological abnormalities during symptom exacerbations. Based in the already known model of Sydenham's chorea, the proposed phisiopathology of the disease consists in a cross-react immune response against the host's tissue, specially basal ganglia. It is also discussed the genetic inheritance in susceptible individuals, as well as laboratory and neuroimaging findings. The treatment emphasize the importance of other alternatives, besides pharmacotherapy that could change the auto-immune reaction, considered responsible for the disease's evolution. On the possibility of preventing a neuropsychiatric disorder by treating a streptococcal infection (environmental variable) remains the importance of this model to psychiatrists and general practitioners.
Keywords: PANDAS, Sydenham's chorea, OCD, poststreptococcal neurologic disorder.
RESUMEN
El presente estudio tiene por objetivo revisar la literatura sobre um subgrupo de TOC (trastorno obsesivo compulsivo), identificado inicialmente em 1998 por Swedo et al3, propuesto como modelo para la hipótesis inmunológica. Denominado PANDAS, se caracteriza por desencadenar síntomas atípicos de TOC en niños con historia reciente de infección por Estreptococo B- hemolítico del grupo A. Cinco criterios fundamentales se presentan como base de diagnóstico: 1) presencia de TOC o Trastornos de ticks o ambos, 2) inicio em la infancia entre 3 años de edad y período puberal, 3) curso del episodio caracterizado por inicio abrupto de síntomas o exacerbamiento dramático de síntomas previamente controlados, 4) asociación temporal entre exacerbamiento de la sintomatología y episodio de infección por Estreptococo B- hemolítico del grupo A y 5) asociación con alteraciones neurológicas durante el exacerbamiento de la sintomatología. Basándose en el modelo ya conocido de "Coréia de Sydenham", se discute actualmente la fisiopatología de la enfermedad, lo que apunta para una reacción inmunológica cruzada contra el tejido del huésped. Se discute, también, la herencia genética de los individuos susceptibles, bien como evidencias laboratoriales y de neuroimagen en pacientes acometidos por PANDAS. En relación al tratamiento, se enfatiza la importancia de otras alternativas, además de la farmacoterapia, que puedan interferir en la reacción autoinmune, considerada responsable por la evolución de la enfermedad.
Palabras-clave: PANDAS, Coreia de Sydenham, TOC, infección por Estreptococo B- hemolítico del grupo A
INTRODUÇÃO
O Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) é um transtorno que atinge cerca de 2,5% de indivíduos na população geral1. A sintomatologia característica do TOC também se faz presente em outras situações, em especial nos demais Transtornos do espectro Obsessivo-Compulsivo, como a Síndrome de Tourette (ST). Apesar da prevalência e dos altos custos anuais decorrentes dos transtornos citados, pouco se sabe acerca de sua etiologia. Aceita-se, atualmente, a ocorrência de herança multifatorial nos indivíduos portadores, ou seja, uma herança genética associada à resposta do indivíduo a estressores ambientais². Entretanto, ainda não foi identificada a carga genética específica para pacientes suscetíveis ao TOC e demais transtornos associados. Postula-se, portanto, a importância dos estressores ou fatores de risco para o desenvolvimento de tais patologias.
Uma das mais recentes teorias, envolvendo fatores de risco associados ao TOC, correlaciona a ocorrência de infecção estreptocócica precedendo quadro, por vezes transitório, de TOC e Transtornos de Tique (como ST) em crianças. Mesmo em se tratando de uma constatação recente, aplicável apenas a um quadro específico3 (sintomas subitamente estabelecidos ou exacerbação dramática de sintomatologia pré-existente), a "hipótese imunológica" pode representar um avanço no entendimento da fisiopatologia do TOC, bem como no seu tratamento.
Partindo do modelo já conhecido da Coréia de Sydenham pós-febre reumática, assim como do quadro clínico, das alterações imunes e de neuroimagem observadas no TOC, foi proposto um subgrupo de TOC em crianças denominado PANDAS (pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococal infections). Tal entidade não apenas define um fator de risco específico (infecção primária por estreptococo B-hemolítico do grupo A) como também promove a discussão sobre diagnóstico diferencial e tratamento - uma vez se tratando de origem imunológica, terapias imunomodulatórias podem ser alternativas eficazes4.
O presente trabalho tem por objetivo revisar a literatura desde o artigo publicado por Swedo et al3, em que foram descritos os primeiros 50 casos até a atualidade, bem como alertar clínicos gerais, psiquiatras, infectologistas e otorrinolaringologistas para uma patologia comum a todas estas áreas de especialidade médica. Para tanto, discute-se apresentação clínica, prevalência, fisiopatologia, evidências laboratoriais, de neuroimagem e tratamento.
MÉTODOS
A revisão de artigos foi realizada pelo sistema MEDLINE, cobrindo o período de 1998 (ano da publicação do artigo de Swedo et al3, em que foram descritos os primeiros 50 casos e definidos os critérios diagnósticos para PANDAS) a 2002, utilizando-se como palavras-chave PANDAS, Coréia de Sydenham, TOC e distúrbio neurológico pós-estreptocócico. Artigos anteriores que tratassem de aspectos relacionados a transtornos neuropsiquiátricos como conseqüência de doenças imunológicas, ou que tratassem de forma geral de aspectos neurobiológicos do TOC, a fim de subsidiar o entendimento neuroanatômico de como os circuitos neuronais (córtico-estriado-tálamo-corticais) poderiam ser afetados imunologicamente, também foram consultados e incluídos.
Foram encontrados 32 artigos que satisfizeram os critérios citados acima; destes, 17 foram citados na presente revisão. Excluiu-se desta revisão cartas ao editor e artigos escritos em outras línguas que não o português, inglês, espanhol e francês.
DISCUSSÃO
Critérios Diagnósticos
Poucos autores discordam dos critérios diagnósticos propostos para PANDAS por Swedo et al3 em 1998. Os cinco critérios cardinais citados posteriormente têm sido utilizados como parâmetro para diagnóstico e pesquisa na quase totalidade das publicações consultadas. Apenas um critério, o que define PANDAS como sendo uma entidade exclusivamente pediátrica, por vezes, é discutido, uma vez que vários artigos (principalmente relatos de caso) propõem a existência de PANDAS em adultos5,6.
Apesar de os critérios de Swedo terem sido definidos com embasamento em observações clínicas, é praticamente unânime a aceitação dos mesmos pela comunidade científica. Desta forma, esta revisão não pretende discutir tais critérios, e sim a implicação da constatação clínica de um subgrupo novo no TOC.
Coréia de Sydenham como modelo inicial para a hipótese imunológica
A partir da observação de que a Coréia de Sydenham (CS) poderia ter uma origem imunológica, e do fato de que estes pacientes também apresentavam sintomas obsessivo-compulsivos, alguns autores tentaram relacionar essa etiologia imunológica ao TOC. Por esse motivo, a CS passou a ser um modelo de hipótese imunológica para transtornos psiquiátricos.
A Coréia de Sydenham é uma síndrome neuropsiquiátrica que ocorre geralmente em crianças pré-púberes e que se manifesta após uma infecção por estreptococo B-hemolítico do grupo A. Ocorre em menos de 10% dos pacientes com febre reumática e difere das outras manifestações, porém faz parte do complexo da febre reumática (de acordo com os critérios de Jones) e deve ser tratada com tal7. Além da coréia, que dá nome à Síndrome, sintomas psiquiátricos característicos também estão presentes, incluindo: uma síndrome similar ao Transtorno de Hiperatividade e Déficit de Atenção (TADH) e sintomas obsessivo-compulsivos em alguns casos8.
Sir William Osler9 foi o primeiro a constatar a relação da sintomatologia obsessivo-compulsiva com a coréia de Sydenham quando descreveu "uma persistência no comportamento" de indivíduos portadores. Esta sintomatologia, por vezes atípica, da Coréia de Sydenham passou a sugerir a existência de um subgrupo, representando uma forma mais branda da patologia, causando TOC e tiques, porém, sem manifestação de coréia propriamente dita3.
Na coréia de Sydenham, em um processo conhecido como "mimetismo molecular", anticorpos antiestreptocócicos realizam uma reação cruzada com proteínas dos gânglios da base causando uma resposta inflamatória8, responsável pela manifestação característica da Síndrome. Corroborando com a relação TOC/Coréia de Sydenham estudos recentes indicam o comprometimento e a disfunção dos gânglios da base10, bem como a presença de anticorpos antineuronais11 em ambas as patologias.
A partir, portanto, do modelo já conhecido da Coréia de Sydenham, Swedo et al3 propuseram um subgrupo de pacientes pediátricos com história recente de infecção por estreptococo B-hemolítico do grupo A, manifestação atípica de TOC e ausência na história prévia de Febre Reumática ou Coréia de Sydenham. Tal subgrupo passou a ser denominado PANDAS (pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococal infections).
Epidemiologia
Estudos sugerem a prevalência de 2,5% de TOC na população geral1. Em populações abaixo de 18 anos de idade, estudos apontam uma prevalência que varia de 1% a 2%4. A prevalência de PANDAS é desconhecida. Um estudo12 indica que, em crianças com história recente (menos de 6 semanas) de infecção estreptocócica e com Transtorno de Tique controlado, cerca de 11% sofrem exacerbação dos sintomas. A dificuldade diagnóstica constitui-se no principal viés para um levantamento preciso da incidência de PANDAS na população.
Critérios Diagnósticos para PANDAS
Inicialmente proposto por Swedo et al3, a hipótese imunológica foi pesquisada, com a intenção de definir critérios diagnósticos (Tabela 1), em um grupo de 50 crianças com TOC e história previa de infecção por estreptococo B-hemolítico do grupo A (em geral, infecção de vias aéreas superiores) submetidas a um estudo longitudinal. Como critérios de exclusão, constavam história prévia de Coréia de Sydenham, febre reumática ou outra doença auto-imune.
O subgrupo investigado por Swedo et al3 guarda certas peculiaridades no que diz respeito à sintomatologia do TOC. Os pacientes foram identificados por observação clínica e apresentavam episódio recente de TOC, transtorno de tique ou ambos, além de o curso do episódio ter sido caracterizado por estabelecimento abrupto dos sintomas ou por exacerbação dramática de sintomas previamente controlados, ao contrário do TOC onde a sintomatologia inicia de maneira mais insidiosa1. Também observou-se associação com alterações neurológicas durante a exacerbação dos sintomas - como hiperatividade motora, tiques, movimentos coreiformes, deterioração na escrita3. Todos os pacientes apresentaram manifestação inicial dos sintomas entre três anos de idade e início da puberdade. Os principais sintomas obsessivo-compulsivos encontrados nas crianças investigadas foram os de limpeza/contaminação.
Fisiopatologia
A fisiopatologia do PANDAS ainda é uma incógnita para os pesquisadores. O que ocorre, desde o evento inicial (representado pela infecção estreptocócica B-hemolítica) até o aparecimento da sintomatologia característica do TOC ou Tiques, permanece sem explicação. Entretanto, inúmeros modelos vêm sendo propostos, abordando diversas etapas do processo auto-imune, na tentativa de elucidar o que exatamente ocorre com os pacientes acometidos.
Mais uma vez, parte-se do modelo da Coréia de Sydenham na febre reumática, em que anticorpos anti-estreptocócicos reagem de maneira cruzada com o tecido sadio do hospedeiro, no caso os gânglios da base, resultando em comportamento anormal e movimentos involuntários coreiformes13.
Para melhor compreender a reação auto-imune proposta, deve-se conhecer a estrutura antigênica dos estreptococos hemolíticos, os responsáveis pelo evento inicial. Diversas substâncias antigênicas são encontradas nestes microorganismos, dentre as quais se destacam: antígeno grupo específico da parede celular (no caso do grupo A trata-se da ramnose-N-acetilglicosamina), Proteína M (o mais importante fator de virulência, será discutida posteriormente), Substância T (sem relação com a virulência) e Nucleoproteínas (que constituem a maior parte celular dos estreptococos)14. Os principais estudos realizados acerca da fisiopatologia do PANDAS propõem a Proteína M como substância responsável pelo início da reação cruzada.
A proteína M constitui importante fator de virulência de Estreptococos do grupo A. A Proteína M aparece sob a forma de projeções semelhantes a pêlos na parede celular estreptocócica. Na presença da proteína M, os estreptococos são virulentos; na ausência de anticorpos tipo M-específicos, os microorganismos são capazes de resistir à fagocitose pelos leucócitos polimorfonuclares. Os estreptococos do grupo A, que carecem de proteína M, são avirulentos. A imunidade à infecção por estreptococos do grupo A está relacionada à presença de anticorpos tipo-específicos contra a proteína M. Como existem mais de 80 tipos de proteína M, um indivíduo pode apresentar repetidas infecções por Estreptococos do grupo A de diferentes tipos M14.
As características estruturais e funcionais da proteína M foram extensamente estudadas. A molécula possui estrutura espiralada que separa domínios funcionais. A estrutura permite a ocorrência de mudanças de várias seqüências, sem alterar a sua função, de modo que os imunodeterminantes da proteína M podem mudar repetidamente.
Dentre os diferentes subtipos M da proteína e sua capacidade de provocar resposta imunológica cruzada com o tecido do hospedeiro, destacam-se: o tipo M6 com a pele na psoríase; M12 com o glomérulo após glomerulonefrite aguda; M5 com a sinóvia articular na artrite reumatóide e o tipo M19 com a miosina na miocardite.
A proteína M desempenha um papel importante na patogenia da febre reumática. As paredes celulares de estreptococos induzem a formação de anticorpos que reagem contra o sarcolema cardíaco humano; as características dos antígenos de reatividade cruzada não estão bem estabelecidas. Um componente da parede celular de tipo M induz a produção de anticorpos que reagem contra o tecido do músculo cardíaco, constituindo um determinante de virulência para a febre reumática14.
Evidências indiretas sugerem que as proteínas M12 e M19 possuem receptores semelhantes a determinadas estruturas cerebrais15 bem como tecidos periféricos. Müller et al15 realizou um estudo correlacionando os diferentes subtipos de proteína M em casos de Síndrome de Tourette secundários a infecções estreptocócicas. Constatou-se altos títulos de ASLO - anti-estreptolisina O - definindo a infecção primária, assim como elevados títulos para anticorpos anti M12 e M19. Entretanto, os títulos para os anticorpos anti-subtipos M1, M4 e M6 eram baixos. Esta constatação corrobora com o conhecimento prévio de que as proteínas M12/M19 realizam reação cruzada com tecido cerebral "in vitro".
Assim a fisiopatologia do PANDAS começa a ser elucidada, uma vez que anticorpos antiestreptocócicos passaram a ser relacionados a reações imunológicas cruzadas com gânglios da base, em um mecanismo similar à Coréia de Sydenham. Nesse sentido, o circuito neuronal cortico-estriado-tálamo-cortical poderia estar sofrendo "avarias" imunológicas, desequilibrando as neurotransmissões entre os neurônios de circuito. Áreas específicas do córtex enviam projeções glutamatérgicas (excitatórias) para o estriado (núcleo caudado e putâmen), que representa a "estação" de entrada dos gânglios da base. Os núcleos eferentes (segmento interno do globo pálido, substância nigra pars reticulada e pálido ventral) exercem um efeito tônico inibitório (gabaérgico) sobre seu núcleo-alvo no tálamo. Esse circuito está modulado por dois sub-circuitos paralelos e opostos que vão dos gânglios da base até os núcleos eferentes. Esses sub-circuitos incluem um caminho direto, que vai do estriado, através de inibição gabaérgica, até os núcleos eferentes (a ativação deste caminho tende a desinibir o núcleo talâmico correspondente); e um caminho indireto, que ao sair do estriado, passa pelo segmento externo do globo pálido (via GABA) e deste ponto para o núcleo subtalâmico (também via GABA) e então daí para os núcleos eferentes (via glutamato). O segmento externo do globo pálido exerce uma influência tônica inibitória sobre o núcleo subtalâmico. As projeções gabaérgicas do estriado inibem o segmento externo do globo pálido, liberando o núcleo subtalâmico para excitar os núcleos eferentes, que por sua vez irão inibir o núcleo-alvo no tálamo. Durante a execução de atividades motoras específicas (compulsões, por exemplo), neurônios motores dos núcleos eferentes dos gânglios da base podem evidenciar tanto aumentos como reduções fásicas nas suas descargas elétricas. Há evidências de que a redução dessas descargas nos núcleos eferentes facilitaria movimentos iniciados pelo córtex, e que o aumento dessas descargas teria o efeito oposto. Assim, um desequilíbrio no balanço dessas descargas (que poderia ser causado por ação auto-imune no estriado, por exemplo) poderia tornar um movimento (ou até um pensamento) iniciado pelo córtex, repetitivo, como se "falsos" estímulos fossem enviados para que o circuito permaneça ativado, apesar do córtex já ter recebido a informação de que aquele movimento não é mais necessário. Ocorreria como que uma automatização desse sub-circuito ativador, proporcionado por um "dano" auto-imune16.
Herança Genética
Sabe-se que não basta apenas uma infecção estreptocócica para desencadear PANDAS; se assim o fosse, inúmeras seriam as crianças acometidas e notificadas na literatura em geral. Sendo assim, propõe-se a necessidade de uma carga genética, ainda desconhecida, capaz de tornar alguns indivíduos mais suscetíveis que outros no desenvolvimento de sintomas neurológicos pós-infecção estreptocócica.
Lougee et al17 realizaram um estudo na tentativa de determinar a freqüência de distúrbios psiquiátricos em parentes em primeiro grau de crianças com PANDAS. Seus resultados apontam que 39% dos probandos da amostra possuíam pelo menos um familiar em primeiro grau com história de tique motor ou vocal, enquanto 26% dos probandos possuíam pelo menos um familiar, também em primeiro grau, com TOC diagnosticado. Também foram relatados 11% de pais com diagnóstico de Transtorno de Personalidade Obsessivo-Compulsiva.
Tais resultados mostram que a freqüência de distúrbios de Tiques e TOC em parentes em primeiro grau de crianças acometidas por PANDAS é maior que na população em geral, e são similares aos já conhecidos para Transtornos de Tiques e TOC. Constata-se, portanto, uma predisposição genética em indivíduos acometidos. Necessita-se, entretanto, de novos estudos que melhor relacionem a natureza da relação genética com a resposta à infecção primária.
Evidências Laboratoriais
Inicialmente deve-se investigar o papel da infecção estreptocócica nos pacientes com PANDAS para determinar se a criança está ou esteve recentemente infectada por Estreptococos B-hemolíticos e se há uma relação temporal entre a infecção e o aparecimento de sintomas. Para tanto, dentre os inúmeros testes sorológicos disponíveis, pode-se lançar mão da titulação da anti-estreptolisina O, que irá apontar se há uma infecção aguda ou latente, caracterizando assim a relação temporal. Pode-se realizar também cultura de amostras da garganta das crianças acometidas, definindo a presença de Estreptococos.
Entretanto, estudos recentes18,19 vêm mostrando a importância de marcadores séricos específicos como D8/17. O marcador sérico D8/17 é uma aloantígeno associado a linfócitos B e relacionado com a autoimunidade pós estreptocócica, estando presente na febre reumática. Acredita-se que em indivíduos acometidos por PANDAS este marcador esteja elevado, comprovando assim a hipótese imunológica.
Os dois principais estudos18,19 envolvendo tal marcador pesquisaram o D8/17 em crianças com anorexia nervosa secundária à infecção por Estreptococos. Em ambos, foram encontrados títulos maiores nos pacientes que no grupo controle. Apesar de ser uma proposta ainda experimental, aponta-se a possível presença do D8/17, como marcador sérico, em pacientes com PANDAS.
Evidências de Neuroimagem
Poucas evidências acerca do comprometimento anatômico do cérebro foram observadas. Em alguns casos, foram realizadas ressonâncias magnéticas, sempre apontando para um aumento de volume dos gânglios da base, o que corrobora a hipótese de reação auto-imune cruzada com esta região, assim como ocorre na Coréia de Sydenham. Em um caso clínico5 que sugeria a ocorrência de PANDAS em adultos, observou-se claramente uma alteração volumétrica no globo pálido direito do paciente acometido.
Tratamento
O tratamento de escolha no TOC inclui farmacoterapia, representada principalmente pelos inibidores da recaptação da serotonina (IRS), assim como terapia comportamental. A freqüência de resposta positiva nestes tratamentos varia de 50% a 75% na farmacoterapia e cerca de 67% na terapia comportamental8. O principal diferencial nestas linhas de tratamento é o quanto o paciente melhora, o que varia imensamente na literatura pesquisada (em geral, utilizando-se como parâmetro a escala Y-BOCS20).
Com o a quantidade de informações de que agora se dispõe sobre PANDAS, configurando uma doença imunologicamente mediada, torna-se possível sugerir ou pesquisar diferentes tratamentos que atuem tanto na infecção primária quanto na resposta imune8. Dois ensaios controlados4, 18 randomizados, realizados recentemente, propõem uma nova abordagem para o PANDAS.
Em estudo realizado por Garvey et al18, um grupo de pacientes foi submetido a 4 meses de tratamento com penicilina V, via oral, seguido por 4 meses de placebo, e outro a placebo seguido de penicilina V, durante o mesmo tempo. O objetivo do trabalho era provar que a profilaxia da infecção estreptocócica era capaz de prevenir PANDAS. Não houve diferença entre placebo e penicilina no que diz respeito à severidade da sintomatologia obsessiva-compulsiva. Entretanto, a penicilina foi ineficaz em prevenir infecções e, conseqüentemente, nenhuma conclusão pode ser obtida acerca da eficácia da profilaxia com penicilina em prevenir exacerbação de tiques e TOC.
Em outro estudo conduzido por Perlmutter et al4, crianças com sintomatologia severa e diagnóstico de PANDAS receberam um dos seguintes tratamentos: plasmaferése, imunoglobulina intravenosa (IV) ou placebo. Quando investigados doze meses após a instituição do tratamento, tanto o grupo que foi submetido à plasmaferése quanto o da imunoglobulina IV apresentaram melhoras drásticas na sintomatologia quando comparados ao grupo que recebeu placebo. Tais achados demonstram que tratamentos imonumodulatórios representam uma alternativa eficaz no caso específico do PANDAS, sendo provavelmente ineficazes nas outras formas de TOC.
Ressalta-se, entretanto, que a plasmaferése, assim como a imunoglobulina IV, são tratamentos altamente invasivos, sendo necessária admissão hospitalar para que sejam realizados. Além disso, não foi realizado nenhum estudo comparando as duas alternativas citadas com tratamentos tradicionais como medicações serotoninérgicas e terapia comportamental.
Prognóstico
De uma maneira geral, as crianças acometidas por PANDAS possuem um bom prognóstico, uma vez que a apresentação clássica da doença é de um quadro auto-limitado. O tratamento é requisitado nos casos graves, em que a sintomatologia obsessivo-compulsiva torna-se altamente chamativa e prejudicial, esbatendo-se rapidamente.
Nos casos em que não há uma resposta rápida ao tratamento,ou a sintomatologia persiste, deve-se pensar em Transtornos de Tique ou TOC, com início na infância e apresentação atípica.
CONCLUSÃO
Embora se trate de uma patologia recentemente proposta e, ainda, pouco investigada, o PANDAS representa um possível modelo para a importância dos fatores ambientais nos distúrbios neuro-psiquiátricos. Apesar de se ter uma idéia geral sobre a importância da carga genética nos indivíduos acometidos por tais transtornos, cada vez mais se investiga o papel dos estressores envolvidos e, no caso específico do PANDAS, da infecção estreptocócica. Uma vez definida como desencadeadora de todo um processo auto-imune, resta saber como prevenir a infecção inicial, assim como minimizar seus efeitos no sistema nervoso central.
Com base nos critérios propostos por Swedo3 e adotados pela maior parte da literatura pesquisada, a tendência é que pacientes anteriormente subdiagnosticados, hoje recebam não só o diagnóstico, mas também o tratamento adequado. Este, aponta para uma possível interferência no processo imunológico desencadeado, que conseqüentemente leva a uma remissão quase completa dos sintomas.
O PANDAS, portanto, configura um avanço na maneira de se abordar o TOC, quer seja através da sua fisiopatologia, quer seja através de seu tratamento.
A literatura pesquisada possui diversas limitações, uma vez que, como citado anteriormente, trata-se de um transtorno relativamente novo, e com poucos estudos realizados para melhor elucidá-lo. A maioria dos artigos encontrados são relatos de caso, tornando-se difícil a realização de uma revisão sistemática (metanálise).
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Endereço para correspondência
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