Artigos Científicos

Funcionamento intelectual em pacientes pediátricos com epilepsia: comparação de crianças controladas com medicação, não controladas com medicação e controladas com cirurgia

Cecília Souza-Oliveira; et al

16 de abril de 2011

J. Pediatr. (Rio J.) vol.86 no.5 Porto Alegre out. 2010 

Funcionamento intelectual em pacientes pediátricos com epilepsia: comparação de crianças controladas com medicação, não controladas com medicação e controladas com cirurgia

 

Cecília Souza-OliveiraI; Sara Escosi-RossetII; Sandra S. FunayamaIII; Vera C. TerraIV; Hélio R. MachadoIV; Américo C. SakamotoIV

IPsychologist, Msc. Centro de Cirurgia de Epilepsia (CIREP), Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, SP
IIPsychologist, PhD. CIREP, Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, FMRP, USP, Ribeirão Preto, SP
IIISocial Assistant, Msc. CIREP, Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, FMRP, USP, Ribeirão Preto, SP
IVMD, PhD. CIREP, Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, FMRP, USP, Ribeirão Preto, SP

Correspondência

 


RESUMO

OBJETIVO: Comparar o quociente intelectual (QI) em três grupos de crianças com epilepsia: 1) controlados com medicação, 2) não controlados com medicação e 3) controlados com cirurgia.
MÉTODOS: Noventa e oito pacientes pediátricos, com idades entre 6 e 12 anos, foram selecionados de dezembro de 2007 a julho de 2008. A Escala de Inteligência Wechsler para Crianças - terceira edição (WISC-III) foi utilizada para a avaliação neuropsicológica dos pacientes. Os resultados foram relacionados com a síndrome epiléptica, a etiologia da epilepsia, o tratamento medicamentoso, a idade do paciente no início da epilepsia e a duração da epilepsia.
RESULTADOS: Os escores da WISC foram significativamente melhores no grupo controlado com medicação quando comparados aos do grupo não controlado com medicação. O grupo controlado com medicação obteve um desempenho significativamente melhor na maioria dos subtestes da WISC quando comparado ao grupo não controlado com medicação: vocabulário, aritmética, compreensão, memória de dígitos, completar figuras, arranjo de figuras e cubos. Um número significativamente maior de pacientes com epilepsia idiopática e uso de monoterapia foi observado no grupo controlado com medicação quando comparado ao grupo não controlado. O grupo controlado com cirurgia não apresentou diferença significativa no desempenho do QI quando comparado ao grupo controlado com medicação.
CONCLUSÕES: As crianças com um bom controle de crises tiveram um melhor desempenho no QI geral, verbal e de execução quando comparadas às crianças com epilepsia refratária. Esses resultados podem ser influenciados por fatores clínicos como o uso de monoterapia, o tipo de droga antiepiléptica utilizada, a síndrome epiléptica e a etiologia da epilepsia. A cirurgia de epilepsia pode causar um impacto positivo no desempenho cognitivo das crianças que ficaram livres de crises após o procedimento cirúrgico.

Palavras-chave: Epilepsia, crianças, neuropsicologia.


 

 

Introdução

A epilepsia é uma das doenças neurológicas mais comuns em crianças1. Seu tratamento correto envolve muitas questões além do controle das crises, incluindo aspectos cognitivos e sociais2. É bastante comum que crianças com epilepsia tenham dificuldades de aprendizagem e déficits cognitivos3. Os problemas cognitivos dos pacientes com epilepsia são multifatoriais, incluindo fatores clínicos e demográficos, como: idade de início, frequência das crises, tipo de crise, causa da epilepsia, drogas antiepilépticas e duração da epilepsia4. A heterogeneidade dos diferentes tipos de epilepsia é um dos principais obstáculos para a compreensão do prejuízo cognitivo da síndrome epiléptica. A intensidade do prejuízo causado por essas variáveis isoladamente precisa ser melhor estabelecida5.

Embora os déficits cognitivos possam ser influenciados por esses múltiplos fatores, a frequência das crises parece causar um impacto significativo na sua evolução e pode restringir as competências acadêmicas das crianças, bem como sua capacidade de realizar atividades do dia-a-dia6. Crises recorrentes podem modificar uma grande variedade de processos cerebrais durante o desenvolvimento que são essenciais para a correta formação e funcionamento dos circuitos cerebrais7. Portanto, há evidências sólidas de que pacientes com epilepsia de difícil controle apresentam déficits cognitivos mais difusos e graves do que os pacientes com bom controle de crises8. Cormack et al.9 observaram que 57% das crianças com epilepsia de difícil controle apresentavam disfunções intelectuais. Em outro estudo retrospectivo, incluindo uma abrangente avaliação neuropsicológica de pacientes com epilepsia grave refratária ao tratamento medicamentoso por mais de 10 anos, Thompson e Duncan10 relataram declínio em uma série de funções cognitivas. Além disso, esses mesmo autores observaram que os períodos de remissão das crises estavam associados a um melhor desempenho cognitivo, evidenciando, assim, o impacto negativo das crises na cognição.
 
A remissão das crises pode ser alcançada em cerca de 70% dos pacientes com epilepsia por meio do uso de drogas antiepilépticas11. Estudos anteriores indicam que mesmo esses pacientes bem controlados podem apresentar algum prejuízo cognitivo7,12. Uma importante opção terapêutica para os 30% dos pacientes restantes com epilepsia refratária ao tratamento medicamentoso é a cirurgia de epilepsia, especialmente em pacientes com crises focais13. Embora estudos anteriores indiquem que a cirurgia de epilepsia é tão eficaz em crianças quanto em adultos14, o impacto final deste procedimento sobre as funções cognitivas requer uma investigação mais aprofundada. Atualmente, observa-se uma carência de estudos comparativos avaliando crianças com crises refratárias ao tratamento medicamentoso, crianças com crises bem controladas e crianças livres de crises após cirurgia de epilepsia. O presente estudo teve como objetivo comparar o desempenho cognitivo nesses três grupos de crianças com epilepsia: 1) grupo controlado com medicação, 2) grupo não controlado com medicação e 3) grupo controlado com cirurgia.

 

Métodos

Pacientes

Noventa e oito pacientes pediátricos, com idades entre 6 e 12 anos, foram selecionados de dezembro de 2007 a julho de 2008 e regularmente acompanhados no Ambulatório de Epilepsia Controlada Infantil e no Ambulatório de Epilepsia Refratária Infantil, no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Todos os pacientes tiveram o diagnóstico de epilepsia. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Foram excluídos os pacientes com déficits visuais, auditivos ou de linguagem graves, com transtornos psiquiátricos graves e com deficiência mental grave que pudesse impedir a compreensão da tarefa.

Todos os pacientes foram submetidos a avaliação clínica com um médico experiente na área.

Os dados demográficos incluíram síndrome epiléptica, etiologia da epilepsia, tratamento medicamentoso, idade do paciente no início da epilepsia e duração da epilepsia. A duração da epilepsia foi avaliada individualmente para cada grupo. Para o grupo controlado com cirurgia, a duração foi determinada pela idade da criança no momento da cirurgia menos a idade da criança no início da epilepsia. Para o grupo não controlado com medicação, a duração foi obtida pela idade da criança no dia da avaliação neuropsicológica menos a idade da criança no início da epilepsia. No grupo controlado com medicação, dois subgrupos foram estabelecidos: para as crianças completamente livres de crises por pelo menos dois anos, a duração da epilepsia foi determinada pela idade da criança na última crise menos a idade da criança no início da epilepsia; para as crianças que não se encontravam completamente livres de crises por pelo menos dois anos, a duração da epilepsia foi calculada como a idade da criança no dia da avaliação neuropsicológica menos a idade da criança no início da epilepsia. A classificação da síndrome epiléptica foi realizada de acordo com Engel15, e a provável etiologia foi definida com base nos resultados da ressonância magnética.

Neste estudo, o grupo controlado com medicação foi composto por pacientes que, em uso de medicação antiepiléptica, haviam apresentado de 0 a 4 crises nos últimos dois anos. O grupo não controlado com medicação foi composto por crianças que apresentaram pelo menos uma crise por mês, apesar de um esquema de drogas antiepilépticas ideal, e o grupo controlado com cirurgia referia-se aos pacientes classificados como Classe I de Engel após a cirurgia de epilepsia por, pelo menos, seis meses. Segundo a escala de classificação de Engel, Classe I refere-se aos pacientes livres de crises ou que apresentam apenas crises parciais simples não incapacitantes ou, ainda, uma convulsão generalizada ocasional associada à retirada de antiepilépticos15.

A escolaridade do paciente era classificada como baixa se o nível de instrução do paciente estivesse abaixo do esperado para sua idade por causa de abandono, repetência ou inscrição em uma escola de educação especial. Se o paciente estivesse no nível de ensino esperado para sua idade, sua escolaridade era classificada como média.

 

Avaliação cognitiva

Todas as crianças foram submetidas a uma única avaliação neuropsicológica de cerca de duas horas após um exame médico de rotina no Ambulatório de Epilepsia Controlada Infantil ou no Ambulatório de Epilepsia Refratária Infantil, no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Todas as avaliações foram realizadas pela mesma psicóloga (CSO), com experiência na área.

O quociente intelectual (QI) foi calculado a partir da aplicação da Escala de Inteligência Wechsler para Crianças - terceira edição (WISC-III), uma escala de testes de inteligência padronizados, adaptados para crianças brasileiras com idades de 6 a 16 anos e 11 meses. O QI é dividido em QI verbal e QI de execução e compreende um total de 12 subtestes. O QI verbal avalia a habilidade de expressar e compreender raciocínio verbal e abstrato, sendo influenciado por viés cultural. O teste de QI verbal é composto por seis subtestes: Informação, Semelhanças, Aritmética, Vocabulário, Compreensão e Memória de dígitos. O QI de execução avalia a capacidade de planejamento, a integração e a velocidade de processamento perceptual, e a maioria das atividades requer a medição do tempo gasto para concluí-las. O QI de execução é constituído por sete subtestes: Completar figuras, Código, Arranjo de figuras, Cubos, Armar objetos, Pesquisar símbolos (adicional) e Labirintos (adicional).

A pontuação é determinada através da conversão do escore bruto de cada subteste em um escore de acordo com a idade da criança; este escore é, por sua vez, convertido em um valor de QI. Os níveis de inteligência foram classificados nas faixas superior (escores de QI > 110), normal (escores de QI de 90-109), média inferior (escores de QI de 80-89), limítrofe (escores de QI de 70-79) e deficiência mental (QI < 69), de acordo com as regras do manual de teste.

Os escores ponderados dos subtestes foram classificados em faixas de acordo com o percentil obtido em conformidade com as normas de testes neuropsicológicos16: muito superior (percentil 96-99), superior (percentil 85-95), acima da média (percentil 64-84), média (percentil 26-63), abaixo da média (percentil 10-25) e inferior (percentil < 10). Com base nesta classificação, realizou-se uma divisão categórica dos subtestes, classificando-os em uma escala de dois níveis: desempenho satisfatório, quando os escores ponderados dos percentis foram iguais ou maiores do que 26; ou desempenho insatisfatório, quando os escores ponderados dos percentis foram menores do que 26.


Análise dos dados

As variáveis demográficas categóricas foram avaliadas através do teste do qui-quadrado. As variáveis numéricas foram analisadas através do teste t de amostras independentes. As análises estatísticas foram realizadas usando o programa SPSS, versão 13.0. Os resultados foram considerados estatisticamente significativos quando p < 0,05.

 

Resultados

Os dados clínicos e demográficos e as características cognitivas dos três grupos encontram-se resumidos na Tabela 1. O grupo controlado com medicação foi composto por 36 (36,7%) pacientes, o grupo controlado com cirurgia por 24 (24,4%) pacientes e o grupo não controlado com medicação por 38 (38,8%) pacientes. A idade média no momento da avaliação neuropsicológica foi significativamente baixa (p = 0.03) no grupo controlado com medicação (média = 9,18; DP = 1,9) quando comparado ao grupo controlado com cirurgia (média = 10,32; DP = 1,8). Os grupos não apresentaram diferenças significativas com relação a gênero, início da epilepsia, duração da epilepsia e nível de escolaridade (Tabela 1). Com relação ao número de drogas antiepilépticas, o grupo controlado com medicação apresentou um número significativo e estatisticamente maior de pacientes em uso de monoterapia do que o grupo controlado com cirurgia e o grupo não controlado com medicação (p = 0,001). Quanto aos antiepilépticos específicos, não foi observada diferença significativa nos grupos com relação ao uso de carbamazepina. O uso de valproato foi significativamente maior no grupo controlado com medicação quando comparado ao grupo controlado com cirurgia (p = 0,02). O uso de benzodiazepínicos foi significativamente maior no grupo controlado com cirurgia e no grupo não controlado com medicação em relação ao grupo controlado com medicação (p = 0,001). Houve uma utilização significativa e estatisticamente maior de outras drogas no grupo controlado com cirurgia (p = 0,006) e no grupo não controlado com medicação (p = 0,004) em relação ao grupo controlado com medicação.
   
Com relação à síndrome epiléptica, o grupo controlado com medicação apresentou um número significativo e estatisticamente maior de casos de epilepsia idiopática do que o grupo controlado com cirurgia e o grupo não controlado com medicação (p = 0,0001). Casos de epilepsia focal possivelmente sintomática foram estatisticamente mais frequentes no grupo não controlado com medicação (p = 0,0001) e casos de epilepsia focal sintomática foram mais frequentes no grupo controlado com cirurgia (p = 0,0001).

De acordo com a ressonância magnética, um grande número de prováveis etiologias foi reconhecido neste estudo (Tabela 1). Para os pacientes no grupo controlado com medicação, os resultados incluíram atrofia, isquemia cerebral, displasia cortical e esclerose mesial temporal. Para os pacientes no grupo controlado com cirurgia, os resultados incluíram atrofia, angioma cavernoso, isquemia cerebral, displasia cortical, esclerose mesial temporal, esclerose tuberosa e tumores benignos. As imagens da ressonância magnética do grupo não controlado com medicação revelaram atrofia, cistos de aracnoide, isquemia cerebral, displasia cortical, esclerose mesial temporal, leucomalácia periventricular e encefalite de Rasmussen.
Anormalidades cerebrais foram encontradas em 21/36 dos pacientes controlados com medicação e em 18/38 dos pacientes não controlados com medicação. Estes dados foram estatisticamente significativos quando comparados aos do grupo controlado com cirurgia (p = 0,0001). Exames por imagem do cérebro não foram realizados em seis pacientes, cinco pertencentes ao grupo controlado com medicação, todos apresentavam epilepsias benignas e um paciente apresentava epilepsia focal possivelmente sintomática.

A média do QI foi significativamente maior no grupo controlado com medicação quando comparado ao grupo não controlado com medicação (p = 0,001). As médias do QI verbal e do QI de execução foram significativamente maiores no grupo controlado com medicação quando comparado ao grupo não controlado com medicação (p = 0,02). Não houve diferença significativa entre o grupo controlado com medicação e o grupo controlado com cirurgia em relação ao QI geral, ao QI verbal e ao QI de execução (Tabela 1).

O desempenho dos três grupos nos subtestes da WISC-III encontra-se resumido na Tabela 2. O desempenho nos subtestes da WISC-III foi classificado de acordo com o percentil obtido em cada um dos subtestes e subdividido em dois grupos: desempenho satisfatório (percentil igual ou maior do que 26) e desempenho insatisfatório (percentil menor do que 26). O grupo controlado com medicação apresentou desempenho significativamente melhor nos seguintes subtestes: Vocabulário (p = 0,04), Aritmética (p = 0,002), Compreensão (p = 0,002), Completar figuras (p = 0,02), Memória de dígitos (p = 0,002), Arranjo de figuras (p = 0,009) e Cubos (p = 0,01) quando comparado ao grupo não controlado com medicação. O desempenho do grupo controlado com medicação foi significativamente superior no subteste Memória de dígitos ao do grupo controlado com cirurgia (p = 0,002). Os resultados também indicaram que não houve diferença estatisticamente significativa entre o grupo controlado com medicação e o grupo controlado com cirurgia em relação ao desempenho nos outros subtestes.

 

Discussão

O prejuízo cognitivo em crianças com epilepsia pode apresentar diferentes padrões e gravidade dependendo de vários fatores envolvidos nessa síndrome, como a variabilidade etiológica, os diferentes tipos de crises, a idade de início, a duração da epilepsia, o esquema terapêutico e a frequência das crises. Nosso estudo comparou o desempenho cognitivo de crianças controladas com medicação, não controladas com medicação e controladas com cirurgia, considerando aspectos clínicos, sociais e demográficos.

Neste estudo, a epilepsia idiopática foi encontrada apenas no grupo controlado com medicação e o número de pacientes com epilepsia focal possivelmente sintomática e sintomática foi significativamente maior no grupo controlado com cirurgia e no grupo não controlado com medicação quando comparados ao grupo controlado com medicação. Bhise et al.17 relataram prejuízos cognitivos, principalmente em tarefas de atenção, em um grupo de crianças com epilepsia idiopática, independentemente do tipo de crise. Berg et al.18 mostraram que o prejuízo do desempenho cognitivo em crianças com epilepsia focal sintomática é mais específico e intimamente relacionado à região do cérebro mais afetada.

Semelhantemente às etiologias de epilepsia em nossos pacientes, displasia cortical e tumores benignos foram mais frequentemente observados no grupo controlado com cirurgia quando comparado ao grupo controlado com medicação. Atrofia, esclerose mesial temporal e tumores foram mais comuns no grupo não controlado com medicação quando comparado ao grupo controlado com medicação. Sarkar et al.19 relataram que, para sua série de pacientes submetidos a cirurgia de epilepsia, as etiologias mais frequentemente encontradas foram esclerose mesial temporal, seguida por tumores e displasia. A maioria dos estudos confirmam esses achados e relatam um controle satisfatório das crises após o procedimento cirúrgico14,20. Por outro lado, a atrofia cortical e hipocampal é frequentemente associada à epilepsia não controlada com medicação e a déficits cognitivos mais gerais21.

Alguns autores observaram influências negativas sobre os processos cognitivos com o uso de politerapia, levando a altos níveis séricos das drogas antiepilépticas4,22. Em nosso estudo, houve um número significativamente maior de pacientes em uso de politerapia no grupo controlado com cirurgia e no grupo não controlado com medicação quando comparados ao grupo controlado com medicação.

Evidências científicas sustentam a hipótese de que os efeitos colaterais causados por diferentes antiepilépticos podem contribuir para a ocorrência de déficits cognitivos23. Os resultados do nosso estudo demonstraram que a maioria dos pacientes no grupo controlado com medicação estava em monoterapia com carbamazepina ou valproato. Além disso, o grupo não controlado com medicação e o grupo controlado com cirurgia apresentaram maior número de pacientes em politerapia e uso de benzodiazepínicos, quando comparados ao grupo controlado com medicação. Meador et al.24 relataram que algumas drogas antiepilépticas, como o fenobarbital e os benzodiazepínicos, apresentam maior probabilidade de levar ao desenvolvimento de déficits cognitivos do que a carbamazepina, o ácido valproico e os novos medicamentos antiepilépticos. Segundo esses autores, os pacientes em monoterapia com fenitoína, carbamazepina e ácido valproico na faixa terapêutica não apresentaram efeitos cognitivos adversos na concentração, atenção e habilidades psicomotoras quando comparados a voluntários saudáveis.

Há evidências que sustentam a ideia de que os pacientes com epilepsia refratária apresentam maior deficiência intelectual do que os pacientes controlados com medicação e a população em geral10. Nossos resultados indicaram que as médias do QI, do QI verbal e do QI de execução foram significativamente maiores no grupo controlado com medicação quando comparado ao grupo não controlado com medicação. Engelberts et al.7 investigaram anteriormente o desempenho cognitivo em pacientes com epilepsia crônica bem controlada e controles saudáveis e não observaram déficits na atenção seletiva, memória e funções executivas quando comparados os dois grupos. Seus achados contrastaram com um estudo realizado por Henkin et al.25, no qual os autores mostraram que crianças com epilepsia bem controlada (2,3 crises por ano) tiveram um pior desempenho do que crianças saudáveis em todos os domínios cognitivos, apesar de seu QI normal.

Neste estudo, não foi encontrada diferença significativa nas médias de QI, QI verbal e QI de execução entre o grupo controlado com medicação e o grupo controlado com cirurgia. Alguns estudos enfatizam a relação positiva entre o controle de crises e a manutenção ou melhora cognitiva após a cirurgia de epilepsia, destacando a importância da prevenção dos déficits cognitivos cumulativos causados por crises recorrentes em um cérebro que pode ainda estar em processo de desenvolvimento26,27.

Os resultados indicaram que o grupo controlado com medicação obteve um desempenho significativamente superior nos subtestes Vocabulário e Compreensão quando comparado ao grupo não controlado com medicação. Ambos os subtestes fazem parte do QI verbal e envolvem a capacidade de abstração, a memória episódica e os conhecimentos adquiridos através de questões culturais, intimamente relacionados à inteligência cristalizada. O pior desempenho observado no grupo não controlado com medicação parece resultar de questões sociais, visto que a epilepsia muitas vezes leva a uma vida social e cultural mais limitada devido às limitações impostas por uma doença com alta frequência de crises convulsivas28.

No presente estudo, não foram observadas diferenças no desempenho entre os três grupos no subteste Semelhanças. A maioria dos pacientes nos três grupos apresentou um desempenho insatisfatório no subteste Semelhanças. De acordo com Simões16, o subteste Semelhanças examina a capacidade de abstração e o estabelecimento de relações lógicas, habilidades que são difíceis até mesmo para crianças que apresentam apenas um leve déficit de QI.

Este estudo demonstrou que o grupo controlado com medicação teve um desempenho significativamente satisfatório no subteste Memória de dígitos em relação ao grupo não controlado com medicação e ao grupo controlado com cirurgia. O subteste Memória de dígitos é uma tarefa de memória auditiva de curto prazo, expressão verbal simples e memória de trabalho. Embora o efeito das crises recorrentes sobre essas habilidades ainda não esteja totalmente esclarecido, algumas evidências têm sido relatadas indicando uma correlação entre a alta frequência de crises e o comprometimento dessas funções. Isto provavelmente ocorre porque essas funções exigem atenção focada, uma habilidade muitas vezes prejudicada em crianças com epilepsia, especialmente aquelas submetidas a politerapia. Também foi demonstrado que o grupo controlado com medicação teve um desempenho significativamente satisfatório nos subtestes Cubos e Arranjo de figuras quando comparado ao grupo não controlado com medicação. O mau desempenho deste grupo pode ser resultado das recorrentes crises e da politerapia. Esses fatores podem afetar a velocidade de processamento da informação, uma habilidade essencial para o bom desempenho em ambos os subtestes devido à sua natureza de tempo limite.

Apesar da realização de uma única avaliação neuropsicológica por criança com epilepsia, uma correção para o tempo com crises controladas não pôde ser realizada porque alguns pacientes do grupo controlado com medicação apresentaram até quatro crises no período dos últimos dois anos. Outra limitação refere-se ao pequeno número de pacientes em cada grupo, o que impediu outras classificações da síndrome epiléptica que considerassem os aspectos multifatoriais e pudessem influenciar a cognição.

No entanto, acreditamos que este estudo possa contribuir para demonstrar que crianças com um bom controle de crises apresentam um melhor desempenho no QI geral, verbal e de execução quando comparadas a crianças com epilepsia refratária. Esses resultados podem ser influenciados por fatores clínicos como o uso de monoterapia, o tipo de droga antiepiléptica utilizada, a síndrome epiléptica e a etiologia da epilepsia. Além disso, a cirurgia de epilepsia parece causar um impacto positivo no desempenho cognitivo das crianças que ficaram livres de crises. Embora este assunto seja amplamente discutido na literatura internacional, verifica-se que poucos estudos brasileiros têm realizado estas comparações utilizando testes adaptados para a população.

 

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Correspondência:
Cecília Souza Oliveira
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP - Monte Alegre
CEP 14048-900 - Ribeirão Preto, SP
Tel.: (16) 3602.2613
Fax: (16) 3633.0760
Email: cecilia@rnp.fmrp.usp.br
 

 

Estudo realizado no Centro de Cirurgia de Epilepsia, Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, SP.
Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.
Como citar este artigo: Souza-Oliveira C, Escosi-Rosset S, Funayama SS, Terra VC, Machado HR, Sakamoto AC. Intellectual functioning in pediatric patients with epilepsy: a comparison of medically controlled, medically uncontrolled and surgically controlled children. J Pediatr (Rio J). 2010;86(5):377-383.


Artigo original:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0021-75572010000500005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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