Artigos Científicos

Deficiência auditiva: estudos clínicos sobre o narcisismo materno

Cassia Yuri Asano; Carmen Maria Bueno Neme; Midori Otake Yamada

21 de outubro de 2014

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.30 no.1 São Paulo jun. 2010

 

Deficiência auditiva: estudos clínicos sobre o narcisismo materno

 

Hearing impairment: clinical studies about maternal narcissism

 

 

Cassia Yuri AsanoI,1; Carmen Maria Bueno NemeII,2; Midori Otake YamadaIII,3

IPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) 
IIUniversidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), Bauru/SP 
IIIUniversidade de São Paulo (USP), Bauru/SP

 

 


RESUMO

O diagnóstico de deficiência auditiva (DA) em um filho constitui-se uma situação de crise que inclui uma possível quebra no narcisismo parental, demandando um processo de reorganização individual, conjugal e familiar. A mãe é a principal figura a dedicar-se aos cuidados com o bebê e é ela quem geralmente assume maiores responsabilidades no processo de habilitação ou reabilitação da criança, tendo ainda que lidar com suas expectativas e narcisismo frustrados. Este estudo visa investigar os efeitos do nascimento de um filho com DA no narcisismo materno, aqui entendido como estágio normal da evolução psicossexual do ser humano, necessário para a preservação da vida, e não como patologia. São realizados cinco estudos clínicos de mães de crianças com DA, diagnosticadas estas últimas há menos de um ano. Os dados são coletados por meio de entrevistas individuais semiestruturadas e do Teste de Apercepção Temática (TAT). Constata-se que o nascimento de um filho com DA dificulta a satisfação narcísica esperada e que investindo seus afetos e anseios quase que unicamente na criança, a mãe espera reconstruir seu sonho, obtendo a "cura" da deficiência e a "normalidade" do filho, por meio do implante coclear.

Palavras-chave: Narcisismo materno; Deficiência auditiva; Psicanálise.


ABSTRACT

The diagnosis of hearing loss (HL) in a child constitutes a crisis, includinga possible crash in parental narcissism, requiring an individual, matrimonial andfamiliar reorganization process. The mother is the main figure to devote herselfattending the baby and generally takes the most responsibilities in the processof habilitation or rehabilitation of the child, while still having to deal with her frustratedexpectations and narcissism. This study aims to investigate the effects of a deaf child’s birth on the mother’s narcissism. Here understood as a normal stage of psychosexual development of the human being, needed for life preservation, nota pathology. Five different clinical pratical studies were developed with mothers of deaf children that were diagnosed less than one year ago. The data were collected using individual semi-structured interviews and Thematic Apperception Test (TAT). Based on these studies it was found that the birth of a deaf child makes it difficult to obtain the expected narcissist satisfaction. The mother, investing all her affection and longing almost only on her child, hopes to rebuild her dream obtaining the "cure" and "normality" of her baby by submitting him/her to a cochlear implant.

Keywords: Maternal narcissism; Hearing impairment; Psychoanalysis.


 

 

1. Introdução

A família da criança com necessidades especiais desempenha papel fundamental na habilitação ou reabilitação e no seu desenvolvimento socioemocional. Sendo vista como o suporte da criança com algum tipo de deficiência, a família, enfrenta dificuldades e crises, as quais se iniciam no momento do diagnóstico e podem transformar-se em conflitos familiares mais ou menos graves. Frente à realidade de um diagnóstico de deficiência, os pais frequentemente veem suas expectativas e sonhos se frustrarem, tendo ainda que desempenhar suas funções parentais com altos níveis de tensão e atender a demandas que não esperavam (Kurtzer-White & Luterman, 2003; Boscolo & Santos, 2005).

De acordo com Castro & Piccinni (2004) e Reis (2009), as condições crônicas (CC) ou doenças crônicas orgânicas ou mentais, embora possam ser definidas como problemas de saúde variados, possuem características semelhantes. Esses autores enumeram tais características como o curso demorado, a severidade do impacto na vida da criança afetada e de seus familiares, a limitação na capacidade funcional, a necessidade de hospitalização e terapia no paciente. Reis (2009) ressalta que as CC necessitam de reabilitação e de um longo período de supervisão, observação e cuidados. Esses últimos conduzem a um estresse que sobrecarrega os pais e os demais membros da família, podendo comprometer o processo de reabilitação da criança, tal como foi constatado por Magalhães e outros (2007), em trabalho sobre o desenvolvimento socioemocional de crianças surdas com implante coclear.

Embora o estresse de mães e pais possam ser parecidos, Castro & Piccinni (2004) apontam que, geralmente, são as genitoras que se envolvem com maior profundidade no processo de reabilitação de seus filhos. Pode-se atribuir esse fenômeno a uma característica sociocultural, que faz com que elas internalizem a função de cuidadora da família, visto que a maternidadeé firmemente atrelada à construção do papel social da mulher, tornando-se uma vocação idealizada e cercada por emoções (Emídio, 2008). Para Neves & Cabral (2008), a mãe tem sido vista como símbolo do amor incondicional, além de provedora dos cuidados familiares.

Segundo Bowlby (1988/1989), cabe aos pais fornecer uma base segura para que seus filhos possam explorar o mundo exterior. No entanto, para que isso possa acontecer, é importante que os genitores estejam também apoiados em suas próprias dificuldades e fragilidades para poder enfrentar o diagnóstico de uma deficiência auditiva (DA) na criança.

Ao abordar as características dos diferentes tipos de perdas auditivas, Andrade e cols. (2008) afirma que elas podem ser classificadas quanto ao momento de aquisição (pré, peri ou pós-natal); ao momento de manifestação (pré-lingual, perilingual ou pós-lingual); à hereditariedade (congênita ou genética); à característica clínica (sindrômica ou não) e ao tipo (neurosensorial ou condutiva).

Além dessas classificações, também são categorizadas de acordo com a intensidade com que ocorrem: leve, moderada, grave ou profunda. Cada tipo de DA demandará procedimentos e processos diferentes de habilitação ou de reabilitação, porém sempre serão processos relativamente prolongados e individualizados.

A respeito das formas de habilitação ou reabilitação, Bento e cols. (2004) assinalam que a prótese auditiva convencional (AASI – Aparelho de Amplificação Sonora Individual) é um recurso eficaz no tratamento da perda auditiva de diversos graus, mas exige alguma reserva coclear. Já o Implante Coclear multicanal (IC) é um recurso bastante efetivo para a reabilitação de pessoas com DA neurosensorial severa e profunda (Ferrari e outros, 2004) e que não se beneficiariam com o uso do AASI. Nesse caso, as funções da cóclea são parcialmente substituídas pelo IC, que é um dispositivo eletrônico que desempenha em parte as funções das células sensoriais, estimulando diretamente o nervo auditivo (Coelho e cols., 2009).

Balen e cols. (2009) ressaltam que o processamento auditivo exerce função primordial no desenvolvimento da fala e da linguagem e que a deficiência auditiva pode trazer sérios problemas de comunicação, além de múltiplas consequências (Reis, 2009; Fonseca, 2001). A DA é considerada uma das deficiências mais incapacitantes, pois, além da dificuldade de comunicação, pode ocasionar isolamento social, depressão e sentimentos negativos, que afetam seriamente a qualidade de vida (Teixeira e cols., 2008; Fonseca, 2001), além dos significativos prejuízos linguísticos, educacionais e psicossociais (Monteiro e cols., 2009). Apesar do cenário desanimador, é importante ressaltar, como afirma Fonseca (2001), que a pessoa com deficiência auditiva, apresenta possibilidades de desenvolvimento semelhantes a qualquer ouvinte, desde que devidamente estimulada, o mais precocemente possível.

A despeito dos indiscutíveis avanços nas técnicas e tecnologias atualmente disponíveis para a reabilitação da criança com deficiência auditiva, o diagnóstico da DA ainda é impactante para os pais. Esse diagnóstico pode ocasionar um grande choque neles, desencadeando sentimentos intensos e dolorosos. Passado o momento inicial, sentimentos como negação da deficiência, ódio, confusão, vulnerabilidade, inadequação e ambivalência vêm à tona, acompanhados do desejo de conduzir o filho de volta à normalidade. Segue-se o processo de adaptação à situação, o qual deve levar à aceitação, que ocorrerá em várias etapas, com tempos variados em cada família (Boscolo & Santos, 2005)

Pesquisas realizadas por Castro & Piccinini (2004) comprovam que a mãe é a figura que mais direta e profundamente se envolve no processo de habilitação ou reabilitação da criança com DA enquanto – paralelamente – deve dispor de energia para lidar com suas expectativas e narcisismo frustrados. Estudos sobre a família de crianças com deficiência, realizados e citados por Sassi (1999), sugerem a existência de uma quebra no narcisismo parental frente ao nascimento de uma criança em tais condições, porém o tema é pouco explorado e escassamente aprofundado no estudo das deficiências e seus impactos no funcionamento psíquico dos pais.

Ao discutir o conceito de narcisismo como complemento libidinal da pulsão de autopreservação, até certo ponto atribuível a todo ser humano, Freud (1914/ 1996a) propõe que o modelo do amor dos pais a seus filhos é narcísico, visto que, em sua atitude afetuosa para com os filhos, revivem e reproduzem seu próprio narcisismo já abandonado. Os genitores projetam nos seus descendentes as perfeições que um dia julgaram possuir ou desejaram alcançar. Eles podem agir com a criança, tendo como objetivo a concretização de seus sonhos não realizados. A concepção de uma criança pode mobilizar nos genitores o desejo de ter um bebê perfeito como eles próprios gostariam de ter sido e não o foram.

De acordo com Freud (1914/1996a), Isidor Sadger, no século XX, foi o primeiro a falar de narcisismo como um estadio normal da evolução psicossexual do ser humano, questionando a aplicação do conceito apenas a um tipo de patologia. Assim, o termo narcisismo também se aplica a uma condição natural e saudável e, até certo ponto, fundamental para a preservação da vida. Entretanto, incorporado à linguagem cotidiana, o termo passou a ser tomado como sinônimo de egoísmo, além de comumente ligado à noção de patologia. Tal viés decorre de incorreta delimitação do conceito, tal como discutido pelo próprio Freud.

Ao pesquisar as origens do uso do termo narcisismo, Roudinesco & Plon (1998) colocam que este foi empregado pela primeira vez pelo psicólogo francês Alfred Binet, em 1887, para descrever uma forma de fetichismo que consistia em ter como objeto sexual a própria pessoa. O narcisismo foi entendido, então, apenas como perversão, como um desvio sexual em relação à norma, diferentemente do conceito de fetichismo empregado por Freud (1905/1996b), que se refere a ele como sendo uma substituição imprópria do objeto sexual.

Retomando-se a concepção de Freud (1914/1996a) acerca do conceito de narcisismo como parte da pulsão de autopreservação, bem como sua observação de que o amor dos pais inclui elementos narcísicos, compreendemse as colocações e sugestões de Sassi (1999), ao mencionar a quebra no narcisismo dos genitores quando estes são surpreendidos com o nascimento de um filho com algum tipo de efetiva deficiência.

Ao estudarem o narcisismo no contexto da maternidade, Ferrari, Picinini & Lopes (2006) discutem o ressurgimento do narcisismo infantil da mãe na gravidez e no momento do nascimento da criança, e destacam a importância desse período para o desenvolvimento e o equilíbrio do ego. As entrevistas que realizaram com mulheres, durante a gestação e posteriormente, no quarto e oitavo mês de vida do bebê, mostraram que a inserção dele e a construção do lugar materno relacionam-se a aspectos da constituição da mãe, que são atualizados e reeditados na experiência da maternidade. Marson (2008), trabalhando com o nascimento prematuro de bebês que permanecem na UTI neonatal, assinala a crise de identidade que se instala na mãe, ao ver rompido o sonhado encontro com o filho esperado, fazendo cair por terra suas idealizações e provocando profunda ferida narcísica.

A experiência de trabalhar com crianças com DA em processo de diagnóstico e de habilitação ou de reabilitação, realizando atendimentos psicológicos aos pais, e, mais frequentemente, às mães possibilita constatar o luto a ser elaborado e o re-investimento afetivo a ser realizado por elas para acolherem e se dedicarem aos cuidados com o (a) filho (a) com necessidades especiais. Nesse processo, sonhos, idealizações e perspectivas maternas desorganizam-se, exigindo profundas transformações psíquicas e reestruturações que possam abarcar a nova realidade. As mudanças biológicas e somáticas, além das psicológicas e sociais vividas pelas mulheres na gestação, influenciam significativamente a dinâmica psíquica individual e interpessoal, repercutindo na constituição da maternidade e em suas relações com seu bebê.

Piccinini e cols. (2008) apontam que, na gestação, a constituição da maternidade já se encontra em pleno desenvolvimento, com uma ativa construção e exercício do papel materno. Na gravidez, ocorrem profundas transformações. Essas alteram a visão que a gestante tem de si mesma e as relações que mantém com o mundo, sugerindo um processo de desorganização, a ser seguido por reorganizações necessárias com o nascimento da criança, que acabam por transformar a mulher, de um ser único, a uma mãe com seu bebê. Tais reorganizações e transformações individuais e relacionais tornam-se mais difíceis e complexas, frente ao nascimento de uma criança com deficiência. Nesse caso, a identificação da mãe com a criança – a sintonia do eu-materno com o seu bebê – são condições necessárias para que a mãe disponibilize ao bebê o adequado apoio ou sustentação (holding), conforme descrito por Winnicott (1958/1967), encontram-se prejudicadas e permeadas de angústia. Esses sentimentos e os possíveis conflitos vividos pela mãe de uma criança que nasce com deficiência certamente perturbam o complexo processo de tornar-se mãe. Segundo Gianlupi (2003) esse processo é permeado pela emergência das funções maternas, bem como pela profunda reconstituição psíquica que possibilita à mulher-mãe a constituição de um novo sujeito após as revivências infantis mobilizadas na gestação.

Considerando que o diagnóstico de deficiência auditiva em um filho constituise uma situação de crise que inclui possível quebra no narcisismo parental, demandando um processo de reorganização interna e, sabendo-se ser a mãe a principal figura familiar a se envolver com o bebê e tê-lo aos seus cuidados, o presente estudo visou investigar os efeitos do nascimento de um bebê com DA na dinâmica psíquica da mãe, especialmente no que se refere ao narcisismo materno. A compreensão desse fenômeno e de suas possíveis implicações para o funcionamento psíquico materno poderão clarificar para a mãe, para a família e para os profissionais de saúde envolvidos na reabilitação da criança, as dificuldades e necessidades dessa cuidadora primária, a qual é com frequência sobrecarregada por exigências externas e por demandas psíquicas pouco compreendidas.

 

2. Material e Método

O estudo foi realizado no Centro de Pesquisas Audiológicas (CPA) do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC) da Universidade de São Paulo (USP) – Bauru e seu projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição. O CPA oferece vários programas na área da deficiência auditiva (DA), desenvolve pesquisas e cursos, assim como acessoria na área.

Participaram do presente estudo qualitativo, cinco mães de crianças com DA, com menos de um ano de diagnóstico e que participaram das entrevistas iniciais como parte do estudo de caso da rotina da equipe interdisciplinar. Todas as mães foram atendidas no CPA, sendo selecionadas com base nos seguintes critérios: a) prontuários que continham informação referente a "bom nível de entendimento" da mãe; b) filho (a) com DA fosse o primogênito ou o primeiro dos filhos a apresentar esta deficiência.

Foi utilizado roteiro de entrevista semiestruturada e o Teste de Apercepção Temática - TAT (Murray, 1943/1995). A entrevista semiestruturada partiu de questionamentos básicos, apoiados na teoria psicanalítica e em hipóteses relacionadas ao tema da pesquisa, abrindo, a seguir, amplo campo de indagações e de novas hipóteses que surgiam à medida que eram respondidas pelas informantes. Este modelo de entrevista e de pesquisa qualitativa foi descrito por Triviños (1987). O TAT foi utilizado para possibilitar uma investigação mais aprofundada dos movimentos psicodinâmicos das participantes. De acordo com Murray (1938), o TAT elicia fantasias como resultado da projeção de experiências passadas e necessidades presentes, propiciando a emergência de aspectos emocionais que podem ser analisados e que esclarecem estados emocionais característicos do indivíduo naquele momento.

As mães selecionadas foram contatadas pela primeira pesquisadora e convidadas a participar do estudo. Mediante sua concordância, assinaram um Termo de Consentimento Informado e a "Carta de Informação ao Sujeito da Pesquisa" após terem lido e compreendido todos os dados neles contidos. Esta carta explica, de forma sucinta, os objetivos do estudo, os devidos cuidados éticos dos procedimentos a serem adotados e nome, telefone e endereço da pesquisadora responsável. Todas as participantes assinaram o documento em duas vias, permanecendo uma com os pesquisadores e outra acompanhada de uma cópia da Carta de Informação ao Sujeito da Pesquisa ficou com a participante. Após a entrevista, foram aplicadas oito pranchas do TAT, acrescidas de uma prancha previamente escolhida pela pesquisadora com base nos objetivos do estudo, de acordo com modelo de protocolo simplificado de aplicação desse instrumento clínico, proposto no manual de aplicação e análise do instrumento, por Jacquemin (1990). Todas as respostas foram cuidadosamente anotadas na presença das participantes.

As respostas obtidas nas entrevistas realizadas com as mães e suas produções no TAT foram analisadas e, em conjunto, interpretadas e confrontadas com as proposições deste estudo. Cada caso foi estudado e interpretado individualmente e, após a elaboração de uma síntese de cada um deles, todos foram comparados para a identificação e compreensão de similaridades e diferenças, chegando-se a uma síntese compreensiva geral.

 

Resultados e Discussão

Apresentam-se sínteses individuais dos casos, nas quais foram utilizados nomes fictícios, resguardando-se o necessário anonimato.

Participante 1

Sílvia tem 20 anos de idade e não é casada. João está com um ano e três meses e é seu primeiro filho, fruto de uma gestação não planejada. Durante esse período, não contou com apoio do pai de seu filho, relatando que atualmente o pai frequenta sua casa nos finais de semana, mas não participa ativamente da criação do filho. De acordo com Neves & Cabral (2008), a ausência da participação masculina, inclusive como cuidador secundário, evidencia a determinação sociocultural do caráter feminino do cuidar.

Silvia contou que ficou muito chocada com o diagnóstico de DA de seu filho e, mesmo após quatro meses da confirmação, diz que "a gente [ela e os pais] não acredita ainda...", que existe uma "Não aceitação, né?". Mannoni (1999) afirma que inicialmente as mães experienciam um sentimento de choque e descrença, cujo processo foi denominado de "reação inicial de crise". As expectativas desta mãe são de que "aconteça as coisas rápidas [sic], que coloque o aparelho e comece a ouvir" e para tanto, diz que todos na sua família estão "...trabalhando em cima para que ele possa ouvir...". As palavras dessa participante corroboram os resultados obtidos por meio do TAT, sugerindo que, em meio a expectativas otimistas e desejos de concretização de um ideal que não foi abandonado, existem sentimentos de fragilidade, confusão, impotência, tristeza, solidão e necessidade de ajuda; além de sentimentos de culpa, de cansaço e de perda de energia. A mãe permanece, no momento, fortemente envolvida pela recente maternidade e pela habilitação da criança. Em meio às dificuldades de aceitação da deficiência e à esperança de uma "cura", percebe-se uma angústia à qual não é dada voz, mas que aparece em suas produções no instrumento projetivo. Estes resultados são concordantes com as observações de Mannoni, de que as mulheres são de tal modo sensíveis a qualquer atentado direcionado à vida que saiu dela, que acabam por travar uma árdua batalha, cuja razão reside numa reinvindicação à saúde do filho. Para a autora, frente ao nascimento de um bebê com deficiência, as mulheres são tomadas por uma angústia que é difícil de suportar; angústia esta, que faz frente ao seu narcisismo atingido e aos ideais que devem ser abandonados. Essas mães tendem a negar a existência da angústia, julgando que a recusa de saber, consiste numa prova de saúde. Mannoni (1999) aponta ainda, para o sentimento de solidão que surge devido à necessidade de passar uma imagem suportável de si e de conter as fantasias que não podem ser externalizadas.

Participante 2

Juliana é casada e está com trinta e um anos. Parou de trabalhar durante a gestação e agora pretende dedicar-se apenas ao seu filho (que está com um ano e quatro meses), fato já antes acertado entre ela e o cônjuge. Cursava faculdade há alguns anos e a interrompeu. Relata que ela e o marido desejavam ardentemente um filho. Teve uma gestação complicada, enjoou e vomitou muito. O parto foi difícil a ambas - mãe e criança corriam sérios riscos. Logo após o nascimento, seu filho passou por manobras de reanimação e foi levado para a UTI, onde permaneceu por quase três meses. Juliana só confirmou o diagnóstico de DA quando o filho contava com pouco mais de um ano. Frente ao diagnóstico relata "... perdi o chão [...] Pra mim foi horrível". Recebeu apoio principalmente do cônjuge (com quem relata ter muito diálogo) que procurava sempre ressaltar as possibilidades de habilitação da criança. Os dados obtidos por meio do instrumento projetivo sugerem que a paciente está passando por um momento de análise da situação e dos problemas, com sentimentos de solidão, tristeza e falta de apoio. O sentimento de falta de apoio é comum às mães de crianças doentes, que tendem a perceber o apoio social recebido como insuficiente (Castro & Piccinini, 2004). A presença desses sentimentos sugere sobrecarga emocional e consequente desejo de escape, fuga e descanso, para que as atividades possam ser retomadas posteriormente. Castro & Piccinini (2004) afirmam que este tipo de estressor crônico provoca uma brusca mudança na rotina e um forte abalo nos pais, principalmente na mãe. As visitas constantes a médicos e a necessidade da periodicidade dos tratamentos e de reabilitação potencializam esse estresse.

O medo frente aos obstáculos e o temor de não ter o controle e sucumbir também surgem, ao mesmo tempo em que uma perspectiva positiva de futuro e a esperança de um momento melhor marcam um horizonte a ser alcançado por essa mãe. Mannoni (1999) refere que a mãe se sente de tal modo em jogo, que lhe é difícil renunciar. Sente como se seu papel já estivesse traçado: ela deve tirar o "(...) essencial do seu dinamismo das pulsões de vida e de morte, reivindicadora, revoltada, será sublime na abnegação, intransigente se for o caso..." (Mannoni, 1999, p. 5). A autora ressalta que essas mães, assediadas por fantasias das quais não podem falar, sempre estão habitadas por uma angústia negada, considerando que a recusa de saber constitui, para elas, uma prova de saúde.

Esta participante, dado seu processo inicial de enfrentamento do diagnóstico do filho, entra pouco em contato com a condição da deficiência auditiva, permanecendo fortemente envolvida pela recente maternidade e pela habilitação da criança. Juliana relata que não ocorreram quaisquer mudanças nas suas relações conjugais e familiares após o nascimento do filho. Além disso, e mais importante, em vários momentos da entrevista, Juliana deu depoimentos do tipo: "a gente já sabe que tem uma solução [a DA], né, que tem um caminho, que tem mais um passo a ser dado", "... todo problema que tem uma solução deixa de ser um problema". O foco na habilitação e na esperança do implante coclear, aparentemente, permitem a negação parcial das dificuldades a serem enfrentadas, considerando o implante como "cura" da DA. Nas palavras da participante: "No comecinho, mudou, né? [suas expectativas para o futuro] Porque você espera... Você tem um ideal de um filho, você tem uma expectativa ‘nossa, vai nascer, vai embora pra casa’, não sei o que... Aí você... Morre, morreu tudo [...] mas agora voltou. [...] Não, ele tá [sic] perfeito, ele tem a... A visão super bem, tudo, a única coisa é esse probleminha da... da audição. Então a gente tem que confiar nisso. Como a gente tá falando bastante sobre o implante. [...] Então eu acho assim, mudou na hora, que você recebe a notícia, depois, eu acho que voltou tudo de novo. E... Entusiasmo nosso tá lá em cima, os ideais continuam cada vez mais, pra buscar isso, que é o implante...". A expectativa de Juliana quando chegou ao CPA era a de que seu filho "voltasse a ouvir", negando a deficiência com a qual o filho nasceu.

Participante 3

Helena tem trinta e um anos e está no seu segundo casamento. Já possui outros filhos, que não têm DA e moram com seu ex-marido. Não completou o ensino médio e teve que interromper seu trabalho para buscar habilitação para seu filho, fato que; embora considere válido e compensador, acarreta sofrimento. Relata que sempre trabalhou, manteve sua independência e pretende reaver essa situação, mas não consegue vislumbrar um momento possível para tanto.

A primeira pessoa a suspeitar da DA do filho foi a babá, que expôs sua preocupação. Helena passou a fazer testes caseiros como bater em panelas perto do filho. Verificando que ele não reagia aos sons, levou-o ao pediatra, que a encaminhou ao otorrinolaringologista e este indicou o CPA. Com aproximadamente nove meses de idade, o filho teve a DA confirmada. Atualmente ele tem um ano e cinco meses.

Os dados obtidos na entrevista e no TAT com essa mãe sugerem que ela está passando por um momento de confusão e preocupação. Relatou que esse é um momento de tentativa: "tá tentando... conviver com essa situação". Ao mesmo tempo em que afirma estar tentando aceitar, diz "...perceber que ele é uma criança perfeita, normal, só que ele tem esse probleminha, deficiência auditiva..." e acredita que esse é um momento "bem difícil". Apesar de estar casada e referir apoio e incentivo de familiares e amigos, sente-se sem recursos para enfrentar essa nova demanda, o que a leva a negar parcialmente a deficiência do filho. Apresenta dificuldade em se organizar frente aos problemas, mantendo pouco contato consigo mesma e fechando-se para os desafios, alegrias e novidades. Relata, por exemplo, que "passou um pouco aquele relacionamento [conjugal] alegre [...] Aí a gente ficou mais preocupado, ah não, a gente não vai deixar o [filho], aí a gente ficou mais assim, né? Se isolou mais no caso". Tal atitude agrava ainda mais os sentimentos de solidão e abatimento. Helena diz que, a respeito do seu maior isolamento, sente "um pouco de... tristeza, meio triste, ah, pôxa... mas sabe, ao mesmo tempo sinto aliviada de poder ficar com ele...". Em relação a perspectivas futuras, a participante refere apenas desejos de "dias melhores", pouco conseguindo precisar como seriam esses dias. Espera que o filho "vai escutar normalmente assim, mas... ele vai ter que usar aquele aparelhinho, mas eu espero que ele vai melhorar [...] vai falar [...] Tudo vai mudar, não vai ser assim, como as pessoas falam que ele não vai escutar nunca, que ele não vai falar nunca..."

Tratando-se de uma pessoa que valorizava muito seu trabalho e sua independência, a necessidade de parar de trabalhar para cuidar do filho foi uma decisão bastante difícil, o que possivelmente fortaleceu os sentimentos de abatimento da participante. "Acostumada a trabalhar, minha independência, ficar em casa, cuidando dele, me dedicando a ele... Fogão, panela, casa, assim... [...] ... sincera? Eu não sou uma mulher de ficar em casa, cuidando do filho, cuidando de casa, sempre gostei de trabalhar, sempre trabalhei... É, bem difícil." Um estudo realizado por Possatti & Dias (2002) sobre a multiplicidade de papéis das mulheres e seus efeitos para seu bem-estar psicológico indicou que a atuação da mulher em múltiplos papéis beneficia tanto sua saúde física quanto seu bem-estar psicológico. As autoras constataram que essas mulheres apresentam um nível mais elevado de depressão quando desempenham apenas os papéis tradicionais. Ao desempenhar mais papéis do que apenas os de mãe e esposa, as mulheres não acumulam apenas obrigações, mas também desfrutam dos privilégios e recompensas das outras funções. Além disso, e principalmente para esta participante, trabalhar fora carrega um forte valor social.

Helena também mostrou suas dificuldades em aceitar a deficiência do filho, sensibilizando-se com as observações e comentários dos outros acerca da deficiência. Desconfortável com comentários de colegas, a participante reage "Assim, tento disfarçar ou... Às vezes eu chamo atenção, falo ‘pôxa, não é assim [...] É, um pouco chato essa situação, né, bem desagradável." Manonni (1999) explica que toda depreciação da criança é sentida pela mãe como uma depreciação de si própria. No momento do diagnóstico, Helena diz que ficou "... chateada, fiquei triste. Fiquei bem... triste" e que, frente aos seus ideais anteriores de maternidade, a descoberta da deficiência auditiva representou uma decepção "Fiquei decepcionada assim, no caso. Fiquei revoltada..."

Participante 4

Carolina tem vinte e três anos de idade e mora com seu cônjuge. Está cursando a faculdade e também interrompeu seu trabalho a fim de investir na habilitação do filho que está com dois anos e um mês. Os dados obtidos na entrevista e no TAT sugerem que a participante detém recursos para enfrentar as vicissitudes e que é capaz de fazer uma análise realista dos seus problemas, tratando-se de uma pessoa que faz bastante uso da racionalização. Fadiman e Frager (1980) argumentam que é função dos mecanismos de defesa reduzir ou suprimir estímulos que possam causar desprazer, tentando, assim, manter o equilíbrio do aparelho psíquico. A utilização de mecanismos de defesa está presente em todas as pessoas e é vital para o funcionamento psíquico. O que define uma melhor ou pior capacidade adaptativa é a intensidade, a frequência do uso e a natureza desses mecanismos de defesa, podendo esses ser mais ou menos maduros. Carolina mostra-se cônscia, inclusive, de que ainda não lidou com a deficiência (tampouco a aceitou), já que mantém esperanças de que o Implante Coclear anule a DA. Afirma: "... a gente busca hoje o implante. Se algum exame der alterado, que ele não possa fazer o implante, a gente vai ter que partir pra aceitação. E essa aceitação vai ser muito difícil. Porque ela... até agora a gente não aceitou, completo. A gente aceitou ir atrás. A gente não aceitou a deficiência".

Como expectativa pessoal, esta participante cita o implante coclear: "O meu futuro é ver o [filho] bem. Ver o [filho] com uma qualidade de vida ótima, eu vejo ele com o implante, porque eu tô muito confiante com isso".

Carolina abandonou a sua parte mulher para assumir apenas o papel de "mãe". Relatou que raramente sente falta da "mulher" e que tem dificuldade em trazê-la de volta. Ela decidiu dedicar-se somente ao filho, referindo questionamentos que fez com o marido logo após o diagnóstico, para busca de "responsáveis" pela DA do filho: "acho que a primeira coisa que vem na cabeça quando se tem um diagnóstico assim é o que causou. Eu e o [cônjuge] no começo a gente focou muito nisso, sabe? [...] Daí depois a gente viu que [...] a causa não vai modificar o processo dele. E é isso que a gente se apega hoje, o que pode ser feito, não a causa".

Embora precise e saiba que necessita de ajuda das pessoas que a cercam, a participante demonstrou que não consegue buscar essa ajuda e às vezes nem vê-la. Relatou que, apenas após o diagnóstico de DA, passou a conversar mais com o cônjuge "Eu principalmente mudei muito em relação ao [cônjuge], porque antes eu não falava muito". Percebeu-se também que existe uma dificuldade nos vínculos afetivos familiares, de delimitar seu próprio espaço e o dos outros. Essa dificuldade talvez seja responsável pelo distanciamento que a participante optou por manter entre sua família atual e a família de origem.

Participante 5

Débora tem vinte e cinco anos de idade e é casada. Não completou o ensino médio e teve que abandonar um emprego seguro e que lhe agradava para poder investir nos tratamentos da filha (que está com um ano e três meses). Relata que, embora tenha sido uma decisão difícil, não se arrependeu da escolha. Ela sempre quis engravidar e fez inúmeros planos com o marido para um futuro bebê. Igualmente, sua família aguardava com altas expectativas uma gravidez, que foi bastante comemorada quando aconteceu; a despeito das previsões dos médicos, que acreditavam que ela não conseguiria engravidar devido a complicações nos ovários. Passados cerca de quatro meses do nascimento da filha, suspeitas quanto ao lento desenvolvimento motor do bebê levaram ao diagnóstico de DA e à constatação de outros atrasos, causados supostamente pelo citomegalovírus que teria sido contraído durante a gestação.

Os dados obtidos por meio do TAT e da entrevista permitem sugerir que a participante tem grande capacidade de superação de problemas e adversidades, apresentando características de pessoas consideradas resilientes. De acordo com Paludo & Koller (2005), a resiliência é um processo dinâmico, envolvendo uma adaptação positiva frente a situações de significativa adversidade. É isso que permite que, mesmo frente à deficiência da filha, a participante consiga enfrentar os desafios impostos pela situação e permanecer em adequado contato consigo mesma, inclusive com sua angústia. Débora aponta que a descoberta da deficiência "foi horrível" que foi o mesmo que "uma bruxa que apareceu num conto de fadas. E fez horrores", mas mantém-se estruturada e diz "(...) muitas mães [de deficientes] dependem de calmante (...) Pra suportar. E eu não quis isso pra mim. Eu quis lutar comigo mesma, com a minha personalidade (...) não quis ficar dopada".

Relata que seu relacionamento conjugal mudou muito, que atualmente "... qualquer coisa a gente fica irritado um com o outro, qualquer coisa a gente fica nervoso, aí fala alguma coisa pra ‘magoá’ [sic] um ao outro. [...] A gente se ama muito [...] mas fica aquela luta interior muito grande, pra um compartilhar... compreender melhor um ao outro e às vezes é difícil." Acredita que exista muito preconceito em relação à DA, que constata através do "jeito de olhar" e de comentários como "ah, coitadinha, ai que peninha" e diz que sente o preconceito como "se enfiasse uma faca no meu coração".

Frente ao diagnóstico relata que se sentiu "fracassada... Por que comigo?", mas procurou "lutar com essa situação" para tentar proporcionar à sua filha o melhor possível. Para tanto, usa parcialmente a negação "pra mim, ela é uma criança normal, ela vai ser normal, então... a deficiência auditiva é muito simples" - para que possa, desta maneira - prosseguir na busca da concretização do seu objetivo de tratamento e habilitação da filha. Apóia-se com intensidade na fé, usando a religião como suporte para enfrentar suas dificuldades e obter conforto "(...) se ela veio assim, foi Deus que formou e foi Deus que permitiu... Algo ele tem (...)".

As participantes dessa pesquisa recorreram ao CPA em busca do implante coclear, excetuando-se a participante 1, que ainda não tinha informações sobre o implante.

Todas as mães abandonaram seus trabalhos em prol da maternidade ou do processo de habilitação de seu filho. O trabalho constitui-se uma fonte de renda, mas também uma fonte de satisfação narcísica. Além do trabalho, outros projetos geram satisfação narcísica (como o estudo, a carreira) e mais do que isso, fazem parte do ideal de Ego. Como relatou Sílvia: antes ela era "uma estudante, tava [sic] levando uma carreira", e atualmente, sente que pode "fazer o melhor para ele [seu filho], eu posso dedicar totalmente a ele, que ele possa se recuperar, né?" e que seu ideal atual é "Em torno dele".

Brazelton & Cramer (1992) ressaltam que o comportamento de abandono das necessidades narcísicas da mãe só é possível porque essas necessidades foram projetadas no bebê. Dedicando-se à criança, a mãe espera realizar seus próprios desejos e expectativas. Esta observação pode ser corroborada pelos relatos obtidos neste estudo, que dizem respeito à dificuldade das participantes de se verem como mulheres, vendo-se somente como mães. O filho, tão desejado, traz dificuldades a serem superadas e, a partir desta constatação, há a tentativa de reconstrução dos sonhos projetados na criança idealizada. É importante observar que como expectativa de futuro, as participantes referem: a participante 4 cita o implante coclear; "...o meu futuro é ver o [filho] bem. Ver o [filho] com uma qualidade de vida ótima, eu vejo ele com o implante, porque eu tô muito confiante com isso." Igualmente, a participante 1 diz: "Ai, eu espero que ele ouça... É a única coisa que eu quero...."; a participante 2 diz: "Que ele faça o implante"; para a participante 3: "que tudo dê certo, que... ele consiga... talvez não vai escutar normalmente assim, mas... [...] vai conversar, vai falar...". A participante 5 foi a única que, questionada sobre suas expectativas para o seu futuro, respondeu "...quero ter mais filhos, como mãe eu quero ter mais filhos, como mulher e como mãe...".

O implante não é só para o filho. É também para as mães. Após o nascimento de um filho com algum tipo de deficiência, uma das tarefas dos pais é a de se reconciliar com o bebê real e elaborar a perda do bebê imaginado. Carolina ilustra: "a gente sempre, sempre, sempre, a gente vai idealizar o nosso filho como normal. Como sem nenhuma deficiência, sem nenhum problema." Sassi (1999) coloca que quando não nasce o filho esperado, aquele para o qual já havia um lugar, já se havia construído uma história, escolhido um nome; essa criança se perde e no seu lugar aparece um outro. Corso (2006) afirma que "... o filho que nasce não fica com a cara da encomenda por muito tempo". Ou seja, logo a realidade se impõe e desmancha o ideal do bebê perfeito. A autora ressalta que as mães não investem em seus filhos em troca de pouco, que o filho é sentido e vivido como sendo parte da própria mãe e que ela ficará ao seu lado no infortúnio, vendo-o como uma extensão narcísica. "O baque é muito grande quando se descobre uma... uma deficiência no teu filho, ou um problema no teu filho" como afirma Carolina, e prossegue: "... é como cair o teu chão [ver o filho com DA], assim... É aquela sensação [...] mas é aquela sensação de... do parto. Quando tu idealiza um bebê e ele nasce, tu olha e não é aquele bebê . Tu olha... Não é aquele bebê. Tu fez... Tu olha assim... ‘Mas não é esse o meu filho!’ No início ... eu acho que é essa negação, um pouco. ‘Mas não é esse o meu filho’."

A deficiência da criança parece mostrar, segundo a percepção inconsciente dos pais, suas próprias imperfeições. O IC é visto como algo capaz de anular o diagnóstico médico, permitindo um retorno à situação anterior, quando o bebê ainda mantinha em si a potencialidade idealizada. Mannoni (1999) afirma que as mães de crianças com deficiência, na verdade nada desejam do médico em relação a seus filhos. Desejam algo para elas, desejam que suas perguntas nunca recebam uma resposta, possibilitando, assim, que elas possam continuar a fazê-las; sem receber uma sentença definitiva. O que ocorre nesse caso, no entanto, é que, aventada a possibilidade do implante, as mães assimilam muito mais do que a possibilidade de uma habilitação, mas sim uma possibilidade de "cura". Como ilustrou Juliana, questionada sobre sua reação frente a atitudes preconceituosas para com seu filho: "Magoava no começo. [...] Eu achava que Deus tinha me dado... Essa bucha, né? No começo. Aí ‘cê [sic] percebe que não. Que não é uma bucha, é um presente." E prossegue, quando fala sobre o nascimento do bebê e as dificuldades que teve "Agora sim, ele [Deus] me deu esse presente, né? Difícil de desembalar, né? [...] Mas que a gente sabe que se puxar uma cordinha, o presente vai abrir. Precisa desatar esse nó que ta nesse presente. Então a gente ta correndo atrás pra abrir esse presente".

 

Considerações Finais

Os resultados obtidos permitem sugerir que o nascimento de um filho com deficiência auditiva representa uma situação inesperada, significando um choque e uma quebra no narcisismo materno. Considerando que o narcisismo faz parte da pulsão de autopreservação e que inclui elementos de amor próprio, o nascimento de uma criança com deficiência, faz com que os pais – mais intensamente as mães – vejam não apenas a não realização do ideal projetado na criança, mas também tenham fortes sentimentos de fracasso e frustração pelo abandono de si como mulheres.

Outras realizações como o trabalho, a carreira ou o estudo também são frequentemente abandonados, trazendo sentimentos de solidão, falta de apoio e mágoas. As mães estudadas mostraram que buscam, no implante coclear, a possibilidade de uma restituição narcísica, entendendo-o como um resgate do idealizado e a "recuperação da normalidade" do filho. Os resultados são concordantes com a literatura consultada e com as observações realizadas no trabalho de atendimento direto e acompanhamento psicológico de mães de crianças com DA em processo de diagnóstico e habilitação auditiva. Sugere-se que os profissionais da equipe interdisciplinar estejam atentos não apenas aos aspectos técnicos da habilitação ou reabilitação da criança, mas também abertos e preparados para oferecer suporte às mães, compreendendo a magnitude e o significado psíquico do momento vivido, auxiliando-as no longo processo de cuidados da criança com DA. A dedicação, muitas vezes exclusiva, aos cuidados da criança, ocasiona nas mães um desgaste físico, emocional e afetivo.

Considera-se que a equipe interdisciplinar que atende as mães-cuidadoras, deve reorientar sua prática profissional, desvestindo-se de ideologias que valorizam a cuidadora apenas em seu papel materno, compreendendo-a no conjunto de suas próprias necessidades e, dessa forma, prevenindo possíveis desajustes pessoais e/ou familiares decorrentes da dificuldade da obtenção da satisfação narcísica esperada com o nascimento do filho, e no processo de reconstituição de sua condição de mulher-mãe, na experiência da maternidade.

 

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1 Psicóloga, Especialista em Psicologia Clínica. Contato: Rua Rio Branco 34-05 – Jardim Paulista - Bauru, SP. – Brasil - CEP 17017-220. Fax: 3223-7983 Tel.: (14) 9143-1351 E-mail: cassia.yr@gmail.com
2 Prof.ª Dra. Associada do Depto. de Psicologia e do Depto. de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), Bauru/SP. Contato: Rua Vivaldo Guimarães, 2-34 – B. Estoril - Bauru, SP – Brasil - CEP 17016-070. Tel. (14) 3103-6087. E-mail: cmneme@terra.com.br
3 Mestre em Distúrbios da Comunicação Humana (HRAC/USP). Psicóloga clínica da Seção de Implante Coclear do HRAC/USP. Contato: Rua Silvio Marchioni, 3-20 - Vila Universitária - Bauru, SP – Brasil - CEP 17043-900. Tel. (14)3235-8168. E-mail: miotake@usp.br.


Artigo original:

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-711X2010000100015&lng=pt&nrm=i&tlng=pt

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