Artigos Científicos

Oficinas literárias com crianças em risco psicossocial

Dóris Lieth Peçanha

21 de outubro de 2014

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.27 no.1 São Paulo jun. 2007

 

Oficinas literárias com crianças em risco psicossocial1

 

Literary workshops for children under psychosocial risk

 

 

Dóris Lieth Peçanha2

Universidade Federal de São Carlos

 

 


RESUMO

Este trabalho analisou os efeitos da utilização de contos de fadas em oficinas literárias, no contexto de uma avaliação-intervenção psicológica com crianças em risco psicossocial. Foi estudado um grupo de crianças de rua (N= 12) que frequentava a Casa da Criança, na cidade de São Carlos, São Paulo. A hipótese de trabalho foi a de que os contos de fadas favoreceriam o desenvolvimento sócio-afetivo dos participantes, o que seria expresso, empiricamente, na diminuição do estresse infantil e numa maior empatia nas crianças. O contato com os contos de fadas, no decorrer das oficinas, possibilitou trabalhar as vivências psíquicas de cada criança, num contexto grupal, favorecendo o seu desenvolvimento emocional. Adotou-se uma metodologia quali-quantitativa, através do registro e análise das verbalizações das crianças durante as oficinas literárias e da quantificação dos resultados obtidos nos testes psicológicos. Utilizou-se a Escala de Stress Infantil, a Escala de Empatia e o teste das Fábulas. Esses instrumentos foram aplicados em duas etapas, anterior (pré-teste) e posterior (pós-teste) à realização das oficinas literárias. Os resultados foram tratados de forma qualitativa (análise de conteúdo) e quantitativa (estatística descritiva), sendo que os resultados obtidos nesta última forma são priorizados neste relato. A análise dos dados indicou uma diminuição nos escores totais de estresse em 85% das crianças, após a intervenção. Nenhuma delas apresentou vulnerabilidade para o desenvolvimento de somatizações tanto no pré-teste como no pósteste. Este dado foi confirmando no teste das Fábulas, onde as crianças tendiam a dirigir sua agressividade para o exterior. No pós-teste constatou-se o aumento dos escores de empatia no grupo estudado. 81,8% dos participantes apresentaram, no pós-teste de Empatia, uma pontuação maior que 50% dos pontos possíveis da escala para determinar uma atitude empática. Os resultados obtidos sugerem a eficácia da intervenção realizada, contribuindo para fundamentar cientificamente o desenvolvimento de oficinas literárias com crianças de rua.

Palavras-chave: Crianças de rua; Contos de fadas; Stress; Empatia; Teste das fábulas.


ABSTRACT

This work analyses the effect of using fairy tales in literary workshops, within a psychological evaluation-intervention with children under psychosocial risk. A group of street children (N=12) who were cared by the “Casa da Criança” (Child's House) facility in the city of São Carlos, São Paulo, was the object of this study. The assumption of this work is that the fairy tales would encourage the social-affective development of the participants, which would be empirically reflected in the decrease of the children's stress and increase empathy among the children. Being in contact with the fairy tales during the workshops, made it possible to work with the psychic experiences of each child within a group, supporting their emotional development. A quality-quantitative methodology was implemented through the registry and analysis of the children's verbalizations during the literary workshops and of the score of the results obtained with the psychological tests. The infantile stress scale was utilized, the Empathy Scale and the Fables Test. These instruments were applied in two stages, before (pre-test) and after (past-test) the performance of the literary workshops.The results were evaluated in a qualitative form (analysis of contents) and quantitative (descriptive statistic), and the results derived from this last form have been given priority in this study. The analysis of the data indicated a decrease in the total scores of stress in 85% of the children, after the intervention. Neither of them presented vulnerability for developing of somatizations in the pre or past-tests.This result was confirmed by the Fables Test, where the children tended to direct their aggressiveness outwards. In the past- test an increase on the empathy scores was verified within the group studied. 81.8% of the participants showed in the past-test of Empathy a result higher than 50% of the possible points in the scale to determine an empathic attitude. The final results suggest the efficiency in the performed intervention, contributing to scientifically base the development of literary workshops with street children.

Keywords: Street children; Fairy tales; Stress; Empathy; Fables Test.


 

 

1. Introdução

Inicialmente apresenta-se um breve histórico do projeto desenvolvido para depois contextualizar a temática da criança em situação de rua. Ao final da apresentação sucinta das contribuições teóricas relevantes ao tema, expõe-se o objetivo deste trabalho de pesquisa-intervenção que, ao utilizar-se de oficinas literárias com contos de fadas, visou a diminuição do estresse em crianças de rua e o desenvolvimento da empatia, colaborando assim para a prevenção de distúrbios de conduta que são freqüentes nessa população em risco psicossocial.

A idealização de um trabalho de pesquisa e intervenção utilizando contos de fadas decorreu da história da autora com formação em Psicologia e Letras, de sua experiência literária e de suas atividades anteriores como psicóloga da FEBEM (RS). Nessa instituição, desenvolveu, no final dos anos 70, oficinas literárias e artísticas com crianças e adolescentes em risco psicossocial, contando com a participação de estagiários em Psicopatologia e em Psicologia.

Sobre o histórico do projeto, na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), foram realizadas intervenções por alunos de Psicologia em 2001, na área de saúde, utilizando-se de histórias da literatura infanto-juvenil contemporânea produzida no Brasil. Os resultados foram muito positivos, concernentes ao desenvolvimento sócio-afetivo dessas crianças. Esses resultados levaram ao aprofundamento do estudo, desenvolvendo-se, entre 2002 e 2004, trabalhos exploratórios com a utilização dos contos de fadas. Tal fato culminou na realização da presente pesquisa-intervenção com crianças de rua acolhidas na Casa da Criança, instituição filantrópica que assiste, nas áreas de saúde e educação, a meninos de rua de São Carlos (Projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos da UFSCar).

A escolha dos contos de fadas baseou-se nas evidências da literatura (Alt, 2000; Bettelheim, 1980; Pavoni, 1989; Radino, 2001; Von Franz, 1981) de que eles, ao lidarem com conteúdos arquetípicos da existência humana, constituem-se em formas simbólicas pelas quais o psiquismo manifesta-se, facilitando, assim, o desenvolvimento emocional de seus usuários. Para as crianças de rua que expressam medo e angústia referentes à destrutividade externa (do meio em que vivem) e interna, esperou-se que tal abordagem colaboraria para um melhor desenvolvimento sócio-afetivo delas.

 

Compreendendo a criança de rua

Crescer na pobreza, com ausência de laços afetivos e sociais, consiste em ameaça ao bem-estar da criança e em limitação de suas oportunidades de desenvolvimento. Muitas crianças no Brasil nascem, crescem e desenvolvem-se em tais condições ameaçadoras à sua saúde biopsicossocial, tornando-se então crianças de risco. Entende-se que as condições de risco desenvolvimental tendem a ser multifatoriais e específicas ao organismo e ao contexto. O risco pode ser de natureza física, social ou psicológica e originado por causas externas ou internas. Já os comportamentos de risco dizem respeito às ações das pessoas que aumentam a probabilidade de conseqüências adversas para seu desenvolvimento ou funcionamento psicológico ou social. Assim, as crianças de rua constituem um segmento especial entre as populações de risco (Hutz & Koller, 1997; Poletto, Wagner & Koller, 2004).

O processo de globalização da economia exclui segmentos cada vez mais amplos da sociedade, enfraquecendo o tecido social (como a família extensa e a comunidade integrada) e criando desajustes sociais graves. Nesse contexto, muitas famílias não conseguem oferecer suporte material e emocional aos seus membros. O processo de desqualificação e de desvalorização social dessas famílias favorece a ruptura de seus integrantes com esse sistema. As principais vítimas são as crianças, forçadas, em idade precoce, a buscar a sobrevivência nas ruas das cidades. Elas tornam-se provedoras e não mais receptoras de cuidados e educação (Amazonas, Damasceno, Terto et al., 2003). A carência material, aliada aos problemas de relacionamento familiar, abuso físico ou sexual, e o desejo de “liberdade” levam crianças e adolescentes a migrarem para as ruas (Hutz & Koller, 1997).

Discussões envolvem o uso do termo meninos de rua, diferenciando-o de meninos na rua. Neste texto, referindo-se ao primeiro segmento, utiliza-se a palavra criança de rua, englobando meninos, meninas  e adolescentes em situação de exclusão social e, portanto, em risco psicossocial. Segundo Justo (2003), essas crianças vivem nas ruas sob a máxima da cultura globalizada. Ou seja, em geral, mostram-se fixadas no princípio do prazer, pois buscam satisfação imediata, apresentam baixa tolerância à frustração, submetem-se à lei do mínimo esforço psíquico e apresentam onipotência de pensamentos e negação da realidade. Tais condições emocionais contribuem para uma valorização da pseudo liberdade conquistada nas ruas.

As experiências que essas crianças vivenciam nas ruas, por serem estressantes e de risco, tornam essa população vulnerável, favorecendo o surgimento de distúrbios emocionais e de problemas de conduta (Cecconello & Koller, 2000). Os atos delinqüentes dessas crianças e adolescentes são compreendidos por alguns autores como uma forma de buscar a inserção social, mesmo que às custas do rótulo de marginais. São ainda entendidos como um meio de buscar gratificação imediata e sem esforços, compartilhando a regra do sistema social vigente - capitalista, que propõe “máximo de lucros com o mínino de custos” (Justo, 2003).

Pesquisadores concordam que as características individuais e as estratégias de adaptação, interagindo com recursos disponíveis no ambiente, como apoio familiar ou social, contribuem para que a pessoa possa obter um resultado satisfatório na luta contra as adversidades (Cecconello & Koller, 2000). As dificuldades das crianças de rua impulsionam estudos que buscam uma melhor compreensão de tantos problemas. Entretanto são raras as intervenções disponíveis na literatura, justificando-se assim a apresentação deste trabalho.

 

Tentativas de responder ao problema

Para cumprir a função de manutenção do tecido social, as sociedades, ao longo da história, vêm organizando-se através de instituições cujas características variam de acordo com as concepções sociais vigentes e com a clientela para as quais se destinam (Santana, Doninelli, Frosi & Koller, 2004; Santana; Doninelli; Frosi & Koller, 2005).

Em relação às crianças de rua, uma das soluções encontradas foi a criação de instituições que as abrigassem. Mudanças conceituais referentes ao desenvolvimento infantil e ao papel governamental e não governamental no cuidado com essa população vêm influenciando as características desses locais. Entretanto,  o objetivo de atendimento para que não ficassem expostas à visão das pessoas que passam pelas ruas é uma realidade ao longo da história (Santana et al., 2005).

No Brasil Colônia, o trabalho desenvolvido com as crianças abandonadas era realizado pela Igreja Católica. As Santas Casas de Misericórdia, responsáveis pelas “Rodas dos expostos” (equipamento destinado ao depósito anônimo de crianças abandonadas), assistiram às crianças durante os quatro primeiros séculos da história do País (Justo, 2003). A partir dos anos 60 do século XIX, surgiram muitas instituições de abrigo para menores desvalidos. Justo (2003) relatou que, nesse século, o Brasil República, pautado no modelo da medicina higienista, passou a ver a criança de rua como um problema social, que deveria ser resolvido através da intervenção policial. O Código de Menores entrou em vigor a partir de 1927, trazendo “leis e ações de cunho médico-jurídicas para medicalizar omenor doente e marginal” (Justo, 2003, p. 60). Após o golpe militar de 1964, o problema do menor passou a ser considerado um problema de segurança nacional, onde o caráter policial e punitivo vigorava. Foi essa filosofia que norteou o Plano Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM) e suas fundações - Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), de âmbito federal, e a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) (Justo, 2003).

Nas décadas de 70 e 80 do século passado, surgiram intervenções radicalmente diferentes, como aquelas desenvolvidas por esta autora na FEBEM de Porto Alegre. O conjunto das ações libertadoras realizadas por um conjunto de atores nesse período inspiravam-se, prioritariamente, na Pedagogia do Oprimido e nos demais escritos de Paulo Freire. Essa visão de mundo concebia tais crianças como sujeitos históricos, procurando resgatar sua dignidade e cidadania. Em síntese, passou a interessar quem era essa criança, o que ela sabia, o que ela trazia de diferente, do que ela era capaz, sem compará-la à criança de classe média, rotulando-a de “carente”.

O termo menor, no final do século XX, foi reconhecido como inadequado, em parte por sua conotação pejorativa, e o nome de criança ou adolescente foi contraposto a ele. Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 13 de julho de 1990, houve uma mudança na função e nas características das instituições assistenciais para crianças e adolescentes (Santana; Doninelli; Frosi & Koller, 2005). Ações governamentais, aliadas às mobilizações de ONGs e de setores da sociedade civil,  instalaram os Conselhos Tutelares e os Conselhos Municipais de Direitos, visando a formulação de políticas de assistência social. Tais medidas buscavam a melhoria da qualidade de vida de crianças e adolescentes denominados, a partir de então, de meninos e meninas que se encontram em situação de vulnerabilidade à violência ou risco pessoal e social (Justo, 2003).

Muitas instituições de atendimento à criança em situação de rua são, ainda hoje, discriminatórias e compensatórias, não cumprindo a função de reintegração social pretendida. Contudo, há locais favorecedores do desenvolvimento social e afetivo, conforme relatado em pesquisas junto a esses usuários (Santana; Doninelli; Frosi & Koller, 2005).

Múltiplas são as tentativas de atender, de forma integral, às crianças de rua, unificando esforços governamentais e ações da sociedade civil organizada como aquelas empreendidas pela Casa da Criança, local desta pesquisa-intervenção. O objetivo é, além de suprir necessidades básicas, promover a cidadania. A Casa da Criança, ao desenvolver um trabalho de parceria com a universidade (UFSCar), alcançou o Certificado de Utilidade Pública Federal (portaria 1.090, publicada no Diário Oficial da União em 20 de junho de 2005), impulsionando o trabalho realizado no local. Para tanto houve a contribuição dos projetos de pesquisa-intervenção sob a coordenação desta autora e iniciados em 1998. Destaca-se ainda que, na cidade sede do trabalho (São Carlos), caracterizada – desde 2001 – por um governo participativo, houve apenas um adolescente internado na FEBEM para cada 70 mil habitantes, em contraste a um jovem internado na FEBEM para cada 9 mil habitantes das cidades de Ribeirão Preto e região Central do Estado de São Paulo (Plano Municipal Integrado de Segurança Pública de São Carlos – Balanço 2001-2004).

Enfim, cabe lembrar que o espaço da rua funciona como fonte de referência paradoxal que aparece nas expressões das crianças. Lidando com os paradoxos, as crianças de rua constroem redes de alianças e organizam sua identidade. A dinâmica dessa clientela, marcada pelo paradoxo, reflete-se no trabalho de intervenção realizado pelo psicólogo ou educador social e de rua, e este deve estar atento para não submergir no paradoxo da criança, paralisando sua capacidade de pensar e agir (Menezes & Brasil, 1998).

O objetivo deste projeto foi o de verificar se as oficinas literárias, que se utilizam de contos de fadas, possibilitam a diminuição do estresse em crianças de rua e o desenvolvimento da empatia, colaborando assim para o seu desenvolvimento sócio-afetivo e para a prevenção de distúrbios de conduta, tão freqüentes nessa população em risco psicossocial.

 

2. Metodologia

Sujeitos e local

O trabalho foi ofertado a todas as crianças atendidas pela Casa da Criança, de ambos os sexos, com idades entre 7 e 14 anos. Doze crianças, atendidas em dois sub-grupos conforme idade e interesses, participaram do trabalho de pesquisa-intervenção.

A Casa da Criança, instituição filantrópica vinculada à Missão Evangélica e ao Conselho Tutelar da cidade de São Carlos, atende a cerca de 40 crianças pelo critério de serem consideradas meninos de rua,ou seja, crianças e adolescentes em situação de risco psicossocial. Elas, para usufruírem do atendimento em saúde e educação dispensado pela Casa, necessitam matricular-se na rede de ensino da cidade de São Carlos. Assim as oficinas literárias, alvo deste estudo, abrange um semestre letivo e foram realizadas na Casa da Criança no período livre das aulas.

Método

O projeto teve um delineamento quali-quantitativo. Em termos qualitativos buscou-se a apreensão dos significados que as crianças davam às suas experiências com os contos de fadas, bem como procurou-se, do ponto de vista clínico, conhecer os psicodinamismos apresentados pelas crianças no teste das Fábulas. O aspecto quantitativo, privilegiado neste relato, envolveu a utilização da estatística descritiva na avaliação dos graus de estresse e de empatia das crianças numa situação pré e pós-intervenção.

Materiais

Os contos de fadas selecionados seguiram as sugestões de Pavoni (1989), sendo eles: Contos de Rãs; As Três Penas; A Bela e a Fera; Eros e Psique; A Pele de Urso; Os Seis Cisnes; e Ali Babá e os Quarenta LadrõesConforme as necessidades expressas pelo grupo, também foram incluídos outros contos, como Aladim e a Lâmpada Maravilhosa e O Pássaro de Ouro.

Os instrumentos de avaliação selecionados com o fim de diagnóstico inicial (linha de base) e de verificação dos resultados das oficinas literárias, concernentes às variáveis empatia e estresse no desenvolvimento sócio-afetivo dos participantes, foram:

- A Escala de Stress Infantil (Lipp & Lucarelli, 1998), recomendada para auxiliar no diagnóstico de estresse em crianças entre 6 e 14 anos (ela foi utilizada com o objetivo de quantificar o grau de estresse dos participantes); 
- A Escala de Empatia, adaptada para a utilização no Brasil com crianças de nível sócio-econômico baixo (Ribeiro, Koller, & Camino, no prelo), possibilita verificar o grau de empatia das crianças; 
- O Teste das Fábulas (Cunha, & Nunes, 1993), técnica projetiva que permite conhecer o desenvolvimento sócio-afetivo e os psicodinamismos apresentados pelas crianças nos contextos intrapsíquico e inter-relacional. Considerou-se que essa técnica serviria como coadjuvante no exame da empatia através do estudo das respostas dadas, em especial, às fábulas 3 e 7.

Materiais como lápis, canetas, giz de cera, papéis, massa de modelar, argila e cartolina foram utilizados após a leitura e apresentação pictórica dos contos, visando ao desenvolvimento de técnicas de imaginação ativa, ou seja, expressão, através de palavras e meios plásticos, das impressões e sentimentos gerados pela estória relatada.

 

Procedimentos

Os responsáveis pelas crianças assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido quanto à participação delas nesta pesquisa-intervenção, cumprindo os dispositivos éticos na pesquisa com seres humanos. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSCar.

Realizou-se um encontro inicial com a participação dos auxiliares de pesquisa (alunos do Curso de Graduação em Psicologia da UFSCar), dos cuidadores da instituição e das crianças para fins de esclarecimentos sobre as atividades que seriam realizadas, formulando-se um convite àquelas que livremente quisessem participar do trabalho proposto. Num encontro posterior, foram aplicados os  instrumentos de avaliação que serviram de pré-teste para a subseqüente verificação dos resultados das intervenções com os contos de fadas (pós-teste).

As oficinas literárias ocorreram semanalmente e iniciaram-se no encontro seguinte à primeira aplicação dos instrumentos de pesquisa. Cada sessão foi composta por três momentos. O primeiro consistiu numa atividade psicomotora ou de relaxamento com o objetivo de liberar a energia das crianças, facilitando, assim, a posterior concentração delas na escuta dos contos de fadas. O segundo momento consistiu na leitura dos contos e o terceiro, no desenvolvimento de técnicas de imaginação ativa. Dois alunos do curso de psicologia, um realizando estágio de extensão universitária (PROEX/UFSCar) e o outro, iniciação científica (PIBIC/CNPq), conduziram as sessões, executando as atividades planejadas.

Todas as oficinas foram gravadas em áudio, transcritas na íntegra e seu conteúdo analisado nas reuniões de supervisão realizadas no laboratório VIDA (Vivência Intrapsíquica e Desenvolvimento Ambiento-organizacional), na UFSCar. Comentários adicionais que poderiam escapar ao registro em áudio, bem como interações grupais e a  localização espacial das crianças foram ainda registradas pelo aluno que desempenhava o papel de observador ativo.

Ao término das oficinas, as escalas e o teste das Fábulas foram re-aplicados, constituindo o pós-teste relativamente à intervenção realizada.

 

3. Resultados e Discussão

A análise dos dados provenientes da Escala de Stress Infantil indicou uma diminuição nos escores totais de estresse em 85% das crianças após a intervenção. Ressalta-se que três crianças receberam o diagnóstico de estresse infantil no pré-teste, sendo que apenas uma continuou com esse diagnóstico no pós-teste. Reações físicas, conforme avaliadas nessa Escala, apareceram em apenas uma criança no pré-teste e em nenhuma no pós-teste. Na mesma direção da dimensão física, nenhuma criança apresentou vulnerabilidade para o desenvolvimento de somatizações tanto no pré-teste, como no pós-teste. Tal fato apóia sugestões psicodinâmicas no sentido de que as somatizações tendem a não aparecer na presença de transtornos de conduta ou quando o comportamento é usado predominanentemente como forma de manter o equilíbrio psicossomático. (Debray, 20001)  O resultado relativo à ausência de somatizações no grupo também foi confirmado no teste das Fábulas. Além disso, nesse teste, as crianças tendiam a dirigir sua agressividade para o exterior. Esse dado era esperado, pois essa estratégia de adaptação tende a ser muito utilizada por populações em risco psicossocial que, assim, lutam pela sobrevivência em contextos sociais adversos ao desenvolvimento humano. Ainda, como esperado em populações que se equilibram psiquicamente através das atividades ou da conduta, apenas uma criança foi avaliada como vulnerável à obsessividade no pré-teste e nenhuma no pós-teste.

No pós-teste, constatou-se o aumento dos escores de empatia no grupo estudado após a realização das oficinas literárias. Assim, 82% dos participantes apresentaram, no pós-teste de Empatia, uma pontuação maior que os 50% dos pontos possíveis na escala para determinar uma atitude empática. A análise comparativa realizada entre os pré e pós-testes, resultantes da avaliação com a Escala de Empatia, indicou uma melhora no grau de empatia dos participantes: 45% aumentaram seu grau de empatia; 18% mantiveram o mesmo grau no pré e no pós-teste, e em 36% dos casos houve diminuição. Os resultados referentes à empatia parecem menos relevantes quando comparados à alta dimuição do estresse nessa população. Uma hipótese explicativa pode ser o curto período de intervenção no sentido de afetar uma atitude que depende da qualidade das relações afetivas vividas pelas crianças com pessoas significativas, como é o caso da empatia. Outra possibilidade, que pode ter influenciado os resultados referentes ao grau de empatia das crianças, foi a própria escala utilizada. Ela passou por um processo de adaptação para a utilização no Brasil, com uma amostra de adolescentes de 14 a 16 anos, nas cidades de Porto Alegre/RS e João Pessoa/PB. Neste estudo, o grupo examinado tinha idade menor do que os participantes do estudo de Koller e colaboradores. Além disso, tem-se um contexto social distinto na cidade de São Carlos, conforme foi citado na introdução deste trabalho.

Em relação ao teste das Fábulas, quatro, das onze crianças avaliadas na Escala de Empatia, realizaram integralmente os pré e pós-testes das Fábulas. A perda de dados relativamente a este teste deveu-se à maior complexidade requerida na aplicação de um teste projetivo, como a necessidade de realizá-lo de forma individual, em ambiente com maior privacidade, e às características da própria amostra, como dificuldades de assuidade ou mudanças de turno, desligando-se então das oficinas e não completando o procedimento planejado.

Contudo, ainda que com pequeno número de medidas repetidas no teste das Fábulas, registra-se que, de forma geral, as crianças mantiveram no pós-teste respostas que refletiam a situação de desamparo social na qual estavam inseridas. Esse dado era esperado em função das condições sociais dessas crianças, que permaneciam em situação de risco, indicando assim a estabilidade do teste. Esse sub-grupo de crianças deu respostas com padrão exploratório para a fábula 1, sem nomear figuras de apego como a mãe ou o pai. Isso indica que elas agiam de forma independente frente às situações adversas de suas vidas, não contando com figuras paternas capazes de lhes auxiliar na superação dos obstáculos. Conforme assinalado por Hutz e Koller (1996), do ponto de vista emocional, a saída de casa pode representar o fracasso do apego experimentado por um indivíduo em relação às pessoas de sua família e desta para com ele.

Respostas empáticas foram particularmente examinadas nas fábulas 3 e 7 do referido teste. A fábula 3 coloca o participante num contexto de rivalidade fraterna, solicitando uma atitude empática. A fábula 7, requer a realização de uma doação que poderá ser feita com base empática ou não. No último caso, por exemplo, a resposta pode indicar um conformismo social, ou seja, a criança responde da forma esperada socialmente mas sem um real envolvimento de afeto positivo. No pré-teste, o grupo forneceu, predominantemente, respostas ambivalentes ou possessivas em ambas as fábulas. Contudo, após o desenvolvimento das oficinas literárias as crianças apresentaram padrões empáticos nas respostas dadas às referidas fábulas. Elas mudaram as verbalizações que demonstravam reações onipotentes, de tristeza e perda no pré-teste, para respostas de aceitação e doação espontânea no pós-teste. Essa alteração nas respostas dos participantes é importante quando se considera que se trata de um teste que lida com psicodinamismos, em geral de caráter mais estável. Portanto, há indícios de que a intervenção adotada auxiliou no desenvolvimento sócio-afetivo do grupo trabalhado, aumentando assim o seu grau de empatia.

 

4. Conclusões 

Considera-se que este trabalho preencheu uma lacuna importante na literatura científica no que tange às intervenções com crianças de rua. Além disso, a análise dos dados obtidos no pré e pós-teste sugeriu, neste estudo, a validade das oficinas literárias que se utilizaram dos Contos de Fadas como recurso no processo de desenvolvimento sócio-afetivo de um grupo de crianças de rua.

Porém, a metodologia apresentada não pode, por si só, garantir que as intervenções implementadas neste estudo trarão benefícios em outros contextos. A qualidade da relação  dos animadores das oficinas com a clientela, aliada à compreensão dos psicodinamismos individuais e da dinâmica grupal, foi fundamental para o êxito do trabalho.

Alguns fatores prejudicaram o processo de pesquisa-intervenção. Dentre eles cita-se o fato de que o número de participantes alterou-se, como era esperado com essa população, durante o processo de desenvolvimento das oficinas. A Instituição recebia, durante todo o ano, novas crianças para participar das suas atividades e optou-se por manter esse caráter de receptividade no trabalho descrito. Além disso, alguns participantes desligaram-se da Casa da Criança, deixando, portanto, as oficinas literárias.

Em relação aos instrumentos utilizados salienta-se a validade da Escala de Stress Infantil relativamente ao grupo em estudo, bem como as sugestões promissoras do teste das Fábulas como coadjuvante no estudo da empatia. Os resultados obtidos na Escala de Empatia ocorreram na direção esperada mas foram menos relevantes quando comparados à alta dimuição do estresse no grupo avaliado. Isso pode estar relacionado ao curto tempo de intervenção no sentido de afetar uma atitude que depende da qualidade das relações afetivas vividas pelas crianças com pessoas significativas.

Acredita-se que este estudo forneceu subsídios importantes para o desenvolvimento de intervenções capazes de prevenir ou de reparar danos psicossociais em populações de risco como as crianças de rua. Isto porque evidenciou a importância de oficinas literárias com contos de fadas onde o trabalho das vivências emocionais dessas crianças através de uma atitude empática e inclusiva desempenhou um papel fundamental para o êxito do projeto. Tal sucesso expressou-se, sobretudo, na diminuição do estresse vivido pelos participantes.

Enfim, a utilização de Contos de Fadas, aliada a atividades relaxantes e expressivas, mostrou-se eficaz num processo terapêutico grupal que teve como objetivo possibilitar uma diminuição do estresse e um aumento no grau de empatia de crianças em situação de risco psicossocial, favorecendo assim seu desenvolvimento sócio-afetivo.

 

Referências Bibliográficas

- Alt, C. B. (2000). Contos de fadas e mitos – um trabalho com grupos, numa abordagem junguiana. São Paulo, Vetor Editora Psico-Pedagógica Ltda.

- Amazonas, M. C. L A. Damasceno, P. R., Terto, L. de M. de S, et. al. (2003). Arranjos familiares de crianças das camadas populares. Maringá: Psicologia em Estudo, 8, N. Especial, 11-20.

- Bettelheim, B. (1980). A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

- Cecconello, A. M., & Koller S. H. (2000). Competência social e empatia: um estudo sobre resiliência com crianças em situação de pobrezaNatal: Estudos de Psicologia, 5 (1), 71-93.

- Cunha, J. A., & Nunes, M. L. T. (1993). Teste das Fábulas. São Paulo: Centro Editor de Testes e Pesquisas em Psicologia.

- Debray, R. (2001). Épître à ceux qui somatisent. Paris: Press Universitaires de France.

- Hutz, C. S, & Koller, S. H. (1997). Questões sobre o desenvolvimento de crianças em situação de rua.Natal: Estudos de Psicologia, 2 (1). [Disponível em: http://www.scielo.br].

- Justo, C. S. S. (2003). Os meninos fotógrafos e os educadores: viver na rua e no projeto casa. São Paulo: Editora Unesp.

- Lipp, E. M. N., & Lucarelli, M. D. M. (1998). Escala de Stress Infantil (ESI). São Paulo: Casa do Psicólogo.

- Menezes, D. M. A., & Brasil, K. C. T. (1998). Dimensões psíquicas e sociais da criança e do adolescente em situação de ruaPorto Alegre: Psicologia Reflexão e Crítica, 11 (2), 327-344.

- Pavoni, A. (1989). Os contos e os mitos no ensino: uma abordagem junguiana. São Paulo: EPU.

- Poletto, M., Wagner, T. M. C., & Koller, S. H. (2004). Resilience and child development of children who take care of children: a vision in perspective. Brasília: Psicologia: Teoria e Pesquisa, 20 (3). [Disponível em:http://www.scielo.br].

- Radino, G. (2001). Oralidade, um estado de escritura. Maringá: Psicologia em Estudo, 6 (2), 73-79. [pesquisado em 11-03-2007. Disponível em: http://www.scielo.br].

- Santana, J. P.; Doninelli, T. M.; Frosi, R. V. & Koller, S. H. (2004). Instituições de atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua. Porto Alegre: Psicologia & Sociedade, 16 (2), 59-70.

- Santana, J. P.; Doninelli, T. M.; Frosi, R. V. & Koller, S. H. (2005). Os adolescentes em situação de rua e as instituições de atendimento: utilizações e reconhecimento de objetivos. Porto Alegre: Psicologia Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 18 (1), 134-142.

- Von Franz, M. L. (1981). A interpretação dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Achiamé .

 

 

1 Agradecimentos: - à Casa da Criança – Associação da Missão Evangélica para Assistência à Criança, São Carlos através de seu Presidente, o Sr. Donizeti Aparecido Cruz; aos muitos alunos do Curso de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos que participaram do projeto de avaliação-intervenção nessa Instituição, nas pessoas dos bolsistas de Iniciação Científica, Murilo Bovo e Silva e Iara Araújo Miorim (que realizou seu trabalho de Conclusão de Curso sob a orientação da autora com dados deste projeto); agradecimentos também à Marcela Bianco que, graduada, continuou propondo trabalhos com oficinas literárias à Casa da Criança; à Profa. Dra. Sílvia Helena Koller, que forneceu a Escala de Empatia para utilização neste estudo. 
2 Profª. Dra. do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (com “Menção Honrosa” da Academia Paulista de Psicologia) e do Programa de Pós-graduação em Engenharia de Produção da EESC - USP. Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica USP/ Sorbonne, Paris V. Pós-doutorados: UQTR (Canadá); Paris V e INSERM (França). Líder do Grupo de Pesquisa: Psicopatologia, Desenvolvimento e Família – CNPq. Para informações: Laboratório VIDA - Rodovia Washington Luiz Km 235, C.P.: 676 Departamento de Psicologia, São Carlos, São Paulo.  CEP 13565-905  Tels: 0XX (16) 3351.8361 e  0XX (16) 3361.1134. Fax: 0XX (16) 3361.5513. E-mail: doris@power.ufscar.br


Artigo original:

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-711X2007000100013&lng=pt&nrm=i&tlng=pt

O portal Psiquiatria Infantil.com.br já recebeu

49.743.141 visitantes